sábado, 8 de março de 2008

Out02 A Ilha

Outubro de 2002

A minha amiga Ana acabava de chegar a Moçambique, para o que seria a primeira das suas várias viagens a este país. Vinha de Portugal, carregada com as suas máquinas fotográficas especiais, com o objectivo de visitar a Ilha de Moçambique, o objecto de trabalho do seu próximo projecto: fazer a Ilha em três dimensões.
A Ana nunca foi uma pessoa comum e a nossa amizade também teve um início muito diferente. Foi minha professora de matemática no 10º ano de escolaridade. As nossas vidas levaram rumos diferentes até que se voltaram a encontrar uns anos depois, eu já a trabalhar e com a minha vida académica dada por concluída, e ela, a trabalhar na área de investigação, já com um doutoramento em fotogrametria, tirado em Londres. Desde então sempre fomos muito próximas, apesar de não nos vermos assim tanto. A Ana é uma pessoa complicada, mas muito engraçada, e tem uma característica que nos trás empatia, é muito tolerante e ser tolerante é a minha forma de vida para entender o mundo.
Aproveitei a deixa para conhecer a tão polémica Ilha de Moçambique e lá fomos as duas. De avião até Nampula e de carro alugado até à Ilha. Não posso dizer que todas as pessoas vão dizer da Ilha o mesmo que dizem do Palácio de Alhambra ou das Pirâmides do Egipto, mas posso dizer que para mim a Ilha de Moçambique é o mais belo e misterioso lugar que conheci.
Tem apenas três quilómetros de comprimento e nem um de largura, e nesta pequena área convivem muçulmanos e católicos, edifícios de pedra e cal e de macuti, edifícios grandiosos e em ruínas e casas amontoadas, igrejas com meio século, mesquitas barulhentas e pequenos templos hindus, mulheres negras de caras brancas pintadas, jovens de fato de mergulho e botijas às costas e meninos de óculos partidos, a chegarem à praia vindos do mar com meia dúzia de lagostas em cada mão. Na Ilha é possível sentir a respiração do Camões e imaginá-lo ao nosso lado a escrever um pedaço dos Lusíadas. Na Ilha é possível subir à muralha do forte e imaginar as caravelas ao largo, carregadas de tesouros, especiarias e mercadorias em trânsito entre as Índias e o velho continente, que agora repousam no fundo do mar.
Na Ilha é possível encontrar os desertores dos lugares comuns, como o Gabriel, arquitecto italiano de 30 anos que deixou Milão para viver e trabalhar na Ilha. Reconstruiu uma ruína, transformando-a numa bela casa de tons pastel, que alterna entre divisões com tecto e divisões ao ar livre, jardins e quartos amplos em estilo árabe. Trabalha pela internet. E aluga alguns dos quartos da sua casa para visitas como nós.
Há outros como ele, sejam arqueonautas ou missionários. Mas a Ilha não é para todos. É sobrepovoada, tem pobreza e gente que defeca na praia. A Ilha é para quem entende que todos lá se encaixam, que a pobreza não é de espírito e que os muçulmanos se lavam em vez de usarem papel higiénico. É claro que seria preferível que o fizessem em casa, com os práticos chuveirinhos existentes na maioria das casas de banho nesta zona do país. Mas é preciso ter paciência, porque as casas de banho são agora uma novidade para quem sempre viveu na Ilha.
Eu não me dei por vencida e encontrei a mais bela praia do mundo. O segredo é deixar a maré baixar, contornar o forte e voilá, uma pequena praia digna de capa de revista, com pano de fundo de uma muralha e águas claras a perder de vista.

Um dia, numa troca de e-mails sobre um pequeno filme com imagens captadas na Ilha de Moçambique, foi assim que a descrevi: “A magia não está no DVD em causa e o que muda realmente a vida de uma pessoa é uma visita à Ilha de Moçambique, o que os autores do DVD tentaram registar, e muito bem na minha modesta opinião. Para se perceber os mistérios da Ilha é necessário sentir os odores vindo do Índico quente e da confusão e versatilidade dos menos de 3 km2 de terra sobrepovoada e separada do continente por outros 3 km de água clara e transparente. É preciso percorrer as pequenas passagens entre as casas de macuti e sonhar com os moradores dos edifícios de pedra e cal, actualmente apenas ruínas, vestígios do modo de vida dos nossos antepassados descobridores, destemíveis conquistadores, visionários de um mundo maior e mais distante, talvez os pré-históricos da globalização!
O forte militar numa das pontas da Ilha acolhe a mais antiga capela do hemisfério sul (dizem alguns historiadores) e esconde a mais bela praia em que alguma vez estive. As areias brancas dão à água salgada uma tonalidade quase fuorescente, pintalgada pelas ilhotas que parecem saídas de um livro de histórias de encantar (e das quais, me perdoem a falha, não me lembro os nomes): a que tem plantado o farol e a que é delimitada por muralhas defensivas, que apenas podem incentivar o receio quando o nível da água as faz parecer mais altas.
São muitos os tesouros vendidos por ninharias, verdadeiros ou falsos, como os coloridos colares de missangas e as velhas moedas de reis, que nos deixam a divagar sobre a sua origem. Verdadeiras e por verdadeiras ninharias, são vendidas as lagostas acabadas de pescar por garotos com originais óculos de água e ainda mais originais bóias de sinalização, feitas de garrafas de plásticos presas por cordéis. Verdadeiras e mal-cheirosas são as máscaras brancas nas peles negras das mulheres, que lhes dão um ar teatral e torna banal o preço da beleza. Verdadeiras e arrepiantes são as lápides do interior das igrejas, datadas do século XVI e inscritas com os nossos mais antigos apelidos.
Disseram-me que são cerca de meia centena, os barcos afundados nos arredores, atracção dos arqueonautas, muitos deles vindos do mundo ocidental desenvolvido e que encontram aqui um pequeno mundo de maravilhas paradas no tempo. São alguns os que se deixam seduzir pelos feitiços da Ilha e lá se instalam definitivamente ou por enquanto! Outros são os que não se esquecem e recordam nas imagens de um DVD um dos mais, senão o mais, maravilhoso local do mundo... desculpem o entusiasmo, mas é fácil perceber que sou apaixonada pela Ilha!”

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