Quem descobriu esta viagem na net foi a Sónia, mas fui eu que fiquei mais entusiasmada com os preparativos. Onde é o ponto de encontro, como lá chegamos, o que levamos para não exceder os 12kg de limite de bagagem, as temperaturas, e mais uma quantidade de coisas a estar atentas para uma viagem com 150km de caminhada sem camas, casas de banho, shoppings ou transportes públicos. No fundo seria uma viagem para refrescar o espírito e aquecer o físico.
Primeira decisão a tomar: vamos de carro ou de avião? Decidimos ir de avião, na Air Maroco, Lisboa – Marrakech, com escala em Casa Blanca. Foi a melhor decisão dado o tempo disponível, apesar do facto do avião de regresso ter sido cancelado por nenhuma razão aparente. Acabámos por regressar via Madrid e chegar a casa umas doze horas depois do previsto.
Segunda decisão: levamos roupa de Inverno ou de Verão? Decidimos por tee-shirts para o dia e polares para a noite. Óptima decisão para os 25 graus diurnos e os zero, ou negativos, nocturnos.
Terceira decisão: garrafas de água ou purificantes para a água? Decidimos comprar os pequenos comprimidos purificantes de água, mas ainda bem que acabámos por comprar quarenta garrafas de 1,5 litros de água (2 a 3 litros de água por dia por pessoa), porque a água purificada dos poços que encontrámos pelo caminho, deve ter sido uma das principais causas dos desarranjos intestinais de algumas pessoas na expedição.
E as decisões continuaram a ser tomadas para serem testadas quando já não haveria retorno. Sim, porque tínhamos consciência de que não encontraríamos uma boutique no meio do deserto para comprar um casaco mais quente.
Viajámos, devagarinho, num avião a hélice, do qual não me lembro o nome, entre Lisboa e Casa Blanca, e, rapidamente, num boing 737, entre Casa Blanca e Marrakech. Parece um bocado despropositado, mas deve ser o reflexo da opção da maior parte das pessoas, que viaja de carro, de Portugal até Marrocos.
Assim que saí do avião percebi que estava em África (apesar de estar no único país africano que não faz parte da União Africana). Uma África mais próxima, mais clara, mais árabe, mas África. A confusão e o caos não enganam ninguém. Peões, carros, motas e bicicletas que circulam sem regras. Quer dizer, a regra é tentar não ser atropelado! Mas no fundo, a confusão parece ter alguma ordem invisível, porque ninguém se queixa e tudo se movimenta. O movimento nas estradas, nas estreitas ruas da Medina, na praça Jamaâ El Fna, nos suques, em todo o lado.
Tínhamos um jipe à nossa espera no aeroporto, para nos levar ao hotel. Só que não nos deixou propriamente à porta do hotel e foi a altura em que me arrependi de não ter trazido uma mochila ou um trolley, em vez do saco, sem alças nem rodas, que tive de carregar por várias vezes, por aquelas ruas estreitas, apinhadas de pessoas e veículos de duas rodas, mas onde os carros não cabem.
Chegar ao hotel, foi um alívio, daqueles parecidos com chegar à praia da Costa da Caparica e mergulhar na água fria do mar, num fim de semana de Julho, depois de ter estado duas horas no trânsito, dentro de um carro sem ar condicionado.
Ao passar a porta do hotel, que passava despercebida no meio de tantas portas que ladeavam a estreita e movimentada rua, senti-me no meio das mil e uma noites, embora não estivesse lá o Aladino. Uma construção tipicamente árabe, em forma de quadrado, com as janelas dos quartos a darem para um pátio central, como as que se encontram espalhadas pelo sul de Espanha, devido à influência árabe, mas muito mais exótico, mais luxuoso, mais inebriante. As cores, a iluminação, a decoração, fazia parecer tudo muito mais intenso.
O encontro com o grupo que faria a expedição estava marcado para o dia seguinte de manhã, por isso tivemos essa noite para a primeira exploração à cidade, embora não tenhamos ido muito longe, já que estávamos a 5 minutos da praça Jamaa, o centro da animação de Marrakech. Nesta praça o movimento nunca para, quer sejam 10 horas da manhã ou 11 horas da noite. De dia, os sumos de laranja natural e as serpentes encantadas para turista ver. De noite, as kebabs, os contadores de histórias, as músicas, as pinturas de hena. A toda a hora, os suques, com as suas lojas apinhadas de artigos de pele, louça, pratas, especiarias, tecidos, animais e chá de menta. O chá de menta! Até hoje, em nenhum outro local bebi chá de menta fresca como em Marrocos. No hotel, nos pequeninos cafés dos suques, nos restaurantes, no meio das dunas ou das pedras da orla do deserto, à beira da estrada, debaixo de uma tenda, o chá de menta fresca era irrecusável.
Finalmente conhecemos todos os elementos do grupo que partiria na aventura de percorrer 150km, a pé, durante 9 dias.
12 turistas: eu e a Sónia, portuguesas, uma austríaca, uma húngara, duas australianas, uma canadiana, uma americana, uma japonesa e três ingleses, uma rapariga de Londres, um rapaz de Manchester e um outro de New Castle. Mais uma semi-turista, a Gwen, 34 anos, funcionária da empresa inglesa, organizadora da viagem, que fazia a sua última viagem em Marrocos, dado que tinha sido entretanto colocada no Quénia.
Um guia, um cozinheiro e três homens que tratavam dos camelos.
No total, 18 pessoas, 7 homens e 11 mulheres, entre os 24 e os 54 anos, 9 nacionalidades diferentes e 7 camelos.
Para chegar ao ponto de encontro com o acampamento, viajámos durante um dia inteiro, distribuídos em 2 jipes. Atravessámos a cadeia montanhosa do Atlas, almoçámos em Ouarzazat e seguimos para sul, até sairmos da estrada asfaltada e já sem luz do dia durante algumas horas. Lá chegámos algures, onde estavam instaladas 2 tendas grandes, a “cozinha” e a “sala”, de jantar e de estar, que nos iriam acompanhar durante centena e meia de quilómetros.
Ao princípio parecia uma tarefa impossível, montar as tendas iglô, dois a dois, apenas com a luz das lanternas, mas passado algum tempo, depois dos faróis dos jipes já irem longe, os olhos habituaram-se, e afinal é possível fazer tudo com a luminosidade da lua, 13 lanternas pequenas e dois candeeiros a gás, que ficavam dentro das tendas grandes. Iluminadas pelo interior, estas assemelhavam-se a dois grandes cubos assentes no chão, que pareciam pendurados pelo centro do lado superior, devido à estaca central que sustinha as lonas brancas.
A tarefa da montagem da tenda no final do dia, e desmontagem, na manhã seguinte, repetiu-se 8 vezes, e se tivéssemos cronometrado o tempo de montagem da tenda na primeira e na última noite, teríamos ficado surpreendidas. Mas o que mais me assombrou foram as idas ao “wc”, ou à “loo”, termo inglês que acabou por ser usado por todos, já que o inglês foi a língua usada na comunicação. “I am going to the loo”, foi uma das frases que mais ouvi durante aquela semana. Naquelas circunstâncias era importante ir gritando esta frase até ao local escolhido, para que ninguém aparecesse por aquela zona com a mesma intenção. O engraçado é que na primeira noite, os avisos eram persistentes e alongavam-se por muitos metros. Com o passar dos dias, os avisos estavam cada vez mais perto. Na primeira noite, depois de andar quase um quilómetro, ainda achava que alguém me podia ver, ao mesmo tempo que temia estar tão longe, se algum animal rastejante do deserto decidisse aparecer. Na última noite, saí da tenda e quase que fiz ali mesmo. Mas essa também foi a noite mais fria e mesmo que quisesse, não conseguia andar muito sem congelar.
A rotina diária começava bem cedo. Acordar com o despertador “wake up the portuguese girls”, no volume máximo. Fazer a higiene matinal, ao ar livre, com a escova de dentes e os dodot, atrás de uma duna e com um frio do caraças. Desfazer a tenda. Fechar as malas e deixar tudo pronto para ser carregado para cima dos camelos. Tomar o pequeno almoço: cereais, leite em pó, pão, manteiga e chocolate para barrar, café, chá e pacotes de sumo de laranja. As variações incluíam areia ou não!
Deixávamos o acampamento com o guia, o Mustafa, e começávamos a caminhada. No final da manhã, a caravana dos camelos passava por nós e um deles ficava para trás com o cozinheiro. Era o camelo do almoço. Então, no meio das dunas, em cima de pedras ou simplesmente debaixo de uma árvore, almoçávamos.
As refeições baseavam-se em tubérculos e vegetais cozidos ou simplesmente saladas. O jantar incluía uma sopa, a famosa sopa cor de laranja, que soube deliciosamente nos primeiros dias, mas que já ninguém aguentava no final da viagem. Por vezes tínhamos atum enlatado para acompanhar. Tivemos cuscus, e nos primeiros dias, carne guisada. Para sobremesa tínhamos normalmente fruta. E chá, muito chá!
Uma noite fez-se pão! A massa foi amassada e atirada, sem qualquer invólucro, para um buraco feito na terra, mesmo por baixo das cinzas de uma fogueira antecipadamente ateada. E surpresa, um pão delicioso e sem um grão de areia. Unbelievable! Apesar de não termos onde reabastecer a dispensa, não nos faltou pão fresco.
Voltando à rotina diária. Depois do almoço vinha a caminhada da tarde e no final do dia, encontrávamos novamente o acampamento base. As duas tendas quadradas de lona branca esperavam-nos, para voltarmos a rodeá-las de pequenas meias luas azuis e cinzentas.
Montar as tendas, jantar e conviver sem opção até cairmos cansados nos sacos-camas, no chão.
No quarto dia chegámos a um pequeno oásis. Um micro oásis, com meia dúzia de palmeiras na ponta de uma enorme planície de tons castanhos, a anteceder uma estreita passagem, como se fosse a única saída de uma cratera. Nesse local existia um auberge, uma construção de areia, que me fez lembrar os castelos de areia da praia, imagem que me veio à cabeça sempre que me deparei com os casbah, com os seus acabamentos perfeitos. Tivemos direito a duche. De água quase fria, mas duche, o primeiro e único até deixarmos o deserto.
Este local é uma espécie de ponto turístico no roteiro do deserto, pois trata-se de um dos pontos de passagem do ex-Paris-Dakar. Daí as paredes do interior da construção estarem cobertas de fotos, mapas, folhetos e posters com assinaturas de pilotos de rally.
Nessa noite fizemos uma festa, com muita música ao vivo, tocada pelos marroquinos, e muito vodka, um bem valioso, e que por isso estava exposto ao lado das garrafas de água, nas barracas da última vila onde passámos antes de entrar no deserto.
Lembro-me de pararmos numa estação de combustível da BP, e enquanto os motoristas abasteciam os jipes pela última vez, atravessámos a estrada e percorremos a fila de barraquinhas para fazer as últimas compras.
A estação de serviço tinha um café. Entrei para tomar um chá e deparei-me com o que poderia ser um qualquer café central de uma aldeia portuguesa. Vários homens atentos à televisão, que ficaram mudos e olharam para nós curiosos.
Voltando à noite no auberge. A festa foi o máximo e aproveitámos para celebrar o aniversário do David, que passou a chamar-se King David, já não me lembro muito bem porquê. O problema foi voltar ao acampamento. Experimentem fazer trezentos metros numa completa escuridão, apenas com umas pequenas lanternas, e sem qualquer ponto de referência. A lua estava de folga!
Talvez no 5º ou 6º dia, atravessámos uma área de pequenas dunas, seguidas dum imenso palmal. Acampámos ao lado duma pequena aldeia que parecia, literalmente, feita de areia, quase passando despercebida na paisagem. Não visitámos a aldeia por sugestão do guia. Incomodar os habitantes daquele local longínquo, com o nosso ar de turistas curiosos, não fazia parte dos planos. Limitámos-nos a brincar com os miúdos que correram ao nosso encontro, eles sim, muito curiosos.
De costas para o acampamento vi o pôr do sol. A contra luz dos raios baixos desenhava os contornos do poço e da árvore ao seu lado. Uma árvore baixa, de troncos finos e uma ramagem superior achatada. Estou a olhar para uma das fotos que tirei nesse momento, e que tenho exposta na minha sala. Fantástico!
Há um enigma no deserto que ninguém conseguiu desvendar. No local mais amplo e solitário, a probabilidade de aparecerem, sem pré-aviso nem qualquer explicação, um ou muitos miúdos, a correrem, vindo de lado nenhum, para venderem camelos feitos de tecido com missangas ou fósseis do deserto, é enorme.
Afinal sempre tivemos shopping times!
Chegámos a um local perdido no tempo e no espaço. Uma espécie de ruínas, com restos do que pareciam antigas casas, e um poço escondido no meio das pedras.
Montámos as tendas dentro das paredes recortadas e na manhã seguinte eu e a Sónia descobrimos uma aranha gigantesca, quer dizer, grandinha para o que estamos habituadas a encontrar. Instintivamente começámos a gritar, mas não fizemos nada para sair da tenda, que tinha dois conjuntos de fechos para abrir. E do lado de fora o grupo ficou expectante, sem saber o que fazer. “a spider, a big spider”, e pronto começou a risota. Mas era de facto uma grande aranha.
Nesse dia choveu e levantou-se uma tempestade de areia fina, parecida com nuvens de pó, que se metia em todo o sítio. Só nessa altura dei valor aos turbantes na cabeça, que rapidamente se tornam verdadeiras mascaras contra a insistente areia.
A chuva foi ligeira, mas suficiente para tornar um curso de água seco, em lama, uma verdadeira armadilha para os camelos. Carregados, enterraram as suas longas pernas na lama, e não conseguiam sair sozinhos. Tivemos que descarregar os sete camelos, enterrados na lama até aos tornozelos, e com a areia fina a tentar fustigar qualquer pedacinho de pele à vista. Foram algumas horas de aflição, enquanto não vimos os camelos fora de perigo e sem nenhuma perna partida.
Nesse dia, chegámos a um vale espaçoso e plano, no meio de dunas enormes. Foi uma visão extraordinária, porque as dunas tinham aquela tonalidade do final da tarde, douradas, com sombras cobre em curvas com arestas alaranjadas e outras mais amarelas. Só que a tempestade de areia, que já nos acompanhava desde manhã, tornava a paisagem quase turva, como um quadro sépia. Acampámos nesse espaço plano, com um poço delimitado à superfície por uma pequeno muro de pedra, no meio de duas árvores, altas, esguias e com escassa folhagem. Para qualquer dos lados que olhássemos, o horizonte estava num plano acima das nossas cabeças, no cimo das dunas que nos rodeavam.
Foi nesse local que contornei uma duna enorme à procura de um local apropriado para fazer xi-xi, quando me deparei com uma imagem, no mínimo, insólita. 6 pessoas, 3 tendas, 10 camelos e um WC portátil!
Nessa noite fizemos uma fogueira e ficámos à volta dela, a dançar ao som da música árabe, tocada pelos rapazes dos camelos, os dois homens e o rapaz que tratavam dos dromedários. Carregavam os bichos, davam-lhes de comer, normalmente os restos dos nossos vegetais, base da nossa alimentação, dia sim, dia sim, até ao final da longa caminhada. O mais engraçado, é que dormiam com eles. Sim, dormiam sob as estrelas, apesar do frio e do cheiro dos animais. A verdade é que para abraçar o Fluffy, o meu camelo favorito, castanho claro e com patas felpudas, não me importei nada com o cheiro. Também, o que diria ele de mim, quatro dias sem duche, a toalhetes para bebé, e com areia em toda a parte do corpo.
Adiante. Nessa noite da música à volta da fogueira, os marroquinos organizaram um casamento típico, em que eu fui a escolhida para noiva do Hassan, o rapaz dos camelos. O Hassan, era o dono dos camelos, ou irmão do dono dos camelos, ou da família do dono dos camelos, whatever. 23 anos. Muito bonito. Uma espécie de versão moderna de Laurence da Arábia. E achou que estava apaixonado por mim. Como se pode ficar apaixonado por uma turista, no espaço de uma semana, a andar no deserto! Tentei explicar-lhe que eu nem sequer era loira, mas ele achou que eu era a rapariga ideal para oferecer camelos. Recusei as ofertas para conhecer os tais dos camelos, mas nessa altura já não estava tão certa disso, porque no último dia, quando chegámos ao final do tour em regime de acampamento com pensão completa, perto da vila onde ele e os camelos viviam, apareceu-nos todo lavadinho, bem cheiroso e com o seu turbante branco. Parecia uma miragem. Qualquer coisa nos parecia uma visão, depois de 10 dias sem ver qualquer outro ser humano lavado, incluindo nós. Quando digo nós, digo as 11 raparigas, estupefactas, a olhar para o Hassan. Ficavam a observá-lo à distância, com as objectivas das máquinas fotográficas focadas e a comentar “how gorgeos he is!”.
E nada disto o impediu de me ligar para Portugal, uns dias depois, a falar em árabe e francês, línguas que eu domino muito bem se for para dizer salamalecum ou au revoir. Foi um telefonema interessante, uma mistura de português, inglês, francês e árabe, sem tradução possível.
No último dia atravessámos as Dunas de Erg Chebi. Foi uma experiência extraordinária. Parecem apenas dunas de areia fofa, mas subir os 400m, nas arestas serpenteantes, com a areia a fustigar-nos as pernas como agulhas, é um pouco assustador.
Mais uma imagem inesquecível. O nascer do sol projecta diferentes intensidades de luz na areia, dando a ilusão de que as dunas se movem, com as suas sombras e curvas!
Nessa manhã deixámos Mezouga, sobre rodas, passámos em Erfoud e a promessa de um banho estava cada vez mais perto.
Depois de um duche de uma hora, na tentativa frustrada de retirar toda a areia do meu cabelo, percebi que esta tinha sido uma viagem fascinante a não repetir. Como fazer um salto de bungee jumpimg: foi o máximo, já percebi qual é a sensação, ainda bem que fiz, está feito, e não vou repetir!
Primeira decisão a tomar: vamos de carro ou de avião? Decidimos ir de avião, na Air Maroco, Lisboa – Marrakech, com escala em Casa Blanca. Foi a melhor decisão dado o tempo disponível, apesar do facto do avião de regresso ter sido cancelado por nenhuma razão aparente. Acabámos por regressar via Madrid e chegar a casa umas doze horas depois do previsto.
Segunda decisão: levamos roupa de Inverno ou de Verão? Decidimos por tee-shirts para o dia e polares para a noite. Óptima decisão para os 25 graus diurnos e os zero, ou negativos, nocturnos.
Terceira decisão: garrafas de água ou purificantes para a água? Decidimos comprar os pequenos comprimidos purificantes de água, mas ainda bem que acabámos por comprar quarenta garrafas de 1,5 litros de água (2 a 3 litros de água por dia por pessoa), porque a água purificada dos poços que encontrámos pelo caminho, deve ter sido uma das principais causas dos desarranjos intestinais de algumas pessoas na expedição.
E as decisões continuaram a ser tomadas para serem testadas quando já não haveria retorno. Sim, porque tínhamos consciência de que não encontraríamos uma boutique no meio do deserto para comprar um casaco mais quente.
Viajámos, devagarinho, num avião a hélice, do qual não me lembro o nome, entre Lisboa e Casa Blanca, e, rapidamente, num boing 737, entre Casa Blanca e Marrakech. Parece um bocado despropositado, mas deve ser o reflexo da opção da maior parte das pessoas, que viaja de carro, de Portugal até Marrocos.
Assim que saí do avião percebi que estava em África (apesar de estar no único país africano que não faz parte da União Africana). Uma África mais próxima, mais clara, mais árabe, mas África. A confusão e o caos não enganam ninguém. Peões, carros, motas e bicicletas que circulam sem regras. Quer dizer, a regra é tentar não ser atropelado! Mas no fundo, a confusão parece ter alguma ordem invisível, porque ninguém se queixa e tudo se movimenta. O movimento nas estradas, nas estreitas ruas da Medina, na praça Jamaâ El Fna, nos suques, em todo o lado.
Tínhamos um jipe à nossa espera no aeroporto, para nos levar ao hotel. Só que não nos deixou propriamente à porta do hotel e foi a altura em que me arrependi de não ter trazido uma mochila ou um trolley, em vez do saco, sem alças nem rodas, que tive de carregar por várias vezes, por aquelas ruas estreitas, apinhadas de pessoas e veículos de duas rodas, mas onde os carros não cabem.
Chegar ao hotel, foi um alívio, daqueles parecidos com chegar à praia da Costa da Caparica e mergulhar na água fria do mar, num fim de semana de Julho, depois de ter estado duas horas no trânsito, dentro de um carro sem ar condicionado.
Ao passar a porta do hotel, que passava despercebida no meio de tantas portas que ladeavam a estreita e movimentada rua, senti-me no meio das mil e uma noites, embora não estivesse lá o Aladino. Uma construção tipicamente árabe, em forma de quadrado, com as janelas dos quartos a darem para um pátio central, como as que se encontram espalhadas pelo sul de Espanha, devido à influência árabe, mas muito mais exótico, mais luxuoso, mais inebriante. As cores, a iluminação, a decoração, fazia parecer tudo muito mais intenso.
O encontro com o grupo que faria a expedição estava marcado para o dia seguinte de manhã, por isso tivemos essa noite para a primeira exploração à cidade, embora não tenhamos ido muito longe, já que estávamos a 5 minutos da praça Jamaa, o centro da animação de Marrakech. Nesta praça o movimento nunca para, quer sejam 10 horas da manhã ou 11 horas da noite. De dia, os sumos de laranja natural e as serpentes encantadas para turista ver. De noite, as kebabs, os contadores de histórias, as músicas, as pinturas de hena. A toda a hora, os suques, com as suas lojas apinhadas de artigos de pele, louça, pratas, especiarias, tecidos, animais e chá de menta. O chá de menta! Até hoje, em nenhum outro local bebi chá de menta fresca como em Marrocos. No hotel, nos pequeninos cafés dos suques, nos restaurantes, no meio das dunas ou das pedras da orla do deserto, à beira da estrada, debaixo de uma tenda, o chá de menta fresca era irrecusável.
Finalmente conhecemos todos os elementos do grupo que partiria na aventura de percorrer 150km, a pé, durante 9 dias.
12 turistas: eu e a Sónia, portuguesas, uma austríaca, uma húngara, duas australianas, uma canadiana, uma americana, uma japonesa e três ingleses, uma rapariga de Londres, um rapaz de Manchester e um outro de New Castle. Mais uma semi-turista, a Gwen, 34 anos, funcionária da empresa inglesa, organizadora da viagem, que fazia a sua última viagem em Marrocos, dado que tinha sido entretanto colocada no Quénia.
Um guia, um cozinheiro e três homens que tratavam dos camelos.
No total, 18 pessoas, 7 homens e 11 mulheres, entre os 24 e os 54 anos, 9 nacionalidades diferentes e 7 camelos.
Para chegar ao ponto de encontro com o acampamento, viajámos durante um dia inteiro, distribuídos em 2 jipes. Atravessámos a cadeia montanhosa do Atlas, almoçámos em Ouarzazat e seguimos para sul, até sairmos da estrada asfaltada e já sem luz do dia durante algumas horas. Lá chegámos algures, onde estavam instaladas 2 tendas grandes, a “cozinha” e a “sala”, de jantar e de estar, que nos iriam acompanhar durante centena e meia de quilómetros.
Ao princípio parecia uma tarefa impossível, montar as tendas iglô, dois a dois, apenas com a luz das lanternas, mas passado algum tempo, depois dos faróis dos jipes já irem longe, os olhos habituaram-se, e afinal é possível fazer tudo com a luminosidade da lua, 13 lanternas pequenas e dois candeeiros a gás, que ficavam dentro das tendas grandes. Iluminadas pelo interior, estas assemelhavam-se a dois grandes cubos assentes no chão, que pareciam pendurados pelo centro do lado superior, devido à estaca central que sustinha as lonas brancas.
A tarefa da montagem da tenda no final do dia, e desmontagem, na manhã seguinte, repetiu-se 8 vezes, e se tivéssemos cronometrado o tempo de montagem da tenda na primeira e na última noite, teríamos ficado surpreendidas. Mas o que mais me assombrou foram as idas ao “wc”, ou à “loo”, termo inglês que acabou por ser usado por todos, já que o inglês foi a língua usada na comunicação. “I am going to the loo”, foi uma das frases que mais ouvi durante aquela semana. Naquelas circunstâncias era importante ir gritando esta frase até ao local escolhido, para que ninguém aparecesse por aquela zona com a mesma intenção. O engraçado é que na primeira noite, os avisos eram persistentes e alongavam-se por muitos metros. Com o passar dos dias, os avisos estavam cada vez mais perto. Na primeira noite, depois de andar quase um quilómetro, ainda achava que alguém me podia ver, ao mesmo tempo que temia estar tão longe, se algum animal rastejante do deserto decidisse aparecer. Na última noite, saí da tenda e quase que fiz ali mesmo. Mas essa também foi a noite mais fria e mesmo que quisesse, não conseguia andar muito sem congelar.
A rotina diária começava bem cedo. Acordar com o despertador “wake up the portuguese girls”, no volume máximo. Fazer a higiene matinal, ao ar livre, com a escova de dentes e os dodot, atrás de uma duna e com um frio do caraças. Desfazer a tenda. Fechar as malas e deixar tudo pronto para ser carregado para cima dos camelos. Tomar o pequeno almoço: cereais, leite em pó, pão, manteiga e chocolate para barrar, café, chá e pacotes de sumo de laranja. As variações incluíam areia ou não!
Deixávamos o acampamento com o guia, o Mustafa, e começávamos a caminhada. No final da manhã, a caravana dos camelos passava por nós e um deles ficava para trás com o cozinheiro. Era o camelo do almoço. Então, no meio das dunas, em cima de pedras ou simplesmente debaixo de uma árvore, almoçávamos.
As refeições baseavam-se em tubérculos e vegetais cozidos ou simplesmente saladas. O jantar incluía uma sopa, a famosa sopa cor de laranja, que soube deliciosamente nos primeiros dias, mas que já ninguém aguentava no final da viagem. Por vezes tínhamos atum enlatado para acompanhar. Tivemos cuscus, e nos primeiros dias, carne guisada. Para sobremesa tínhamos normalmente fruta. E chá, muito chá!
Uma noite fez-se pão! A massa foi amassada e atirada, sem qualquer invólucro, para um buraco feito na terra, mesmo por baixo das cinzas de uma fogueira antecipadamente ateada. E surpresa, um pão delicioso e sem um grão de areia. Unbelievable! Apesar de não termos onde reabastecer a dispensa, não nos faltou pão fresco.
Voltando à rotina diária. Depois do almoço vinha a caminhada da tarde e no final do dia, encontrávamos novamente o acampamento base. As duas tendas quadradas de lona branca esperavam-nos, para voltarmos a rodeá-las de pequenas meias luas azuis e cinzentas.
Montar as tendas, jantar e conviver sem opção até cairmos cansados nos sacos-camas, no chão.
No quarto dia chegámos a um pequeno oásis. Um micro oásis, com meia dúzia de palmeiras na ponta de uma enorme planície de tons castanhos, a anteceder uma estreita passagem, como se fosse a única saída de uma cratera. Nesse local existia um auberge, uma construção de areia, que me fez lembrar os castelos de areia da praia, imagem que me veio à cabeça sempre que me deparei com os casbah, com os seus acabamentos perfeitos. Tivemos direito a duche. De água quase fria, mas duche, o primeiro e único até deixarmos o deserto.
Este local é uma espécie de ponto turístico no roteiro do deserto, pois trata-se de um dos pontos de passagem do ex-Paris-Dakar. Daí as paredes do interior da construção estarem cobertas de fotos, mapas, folhetos e posters com assinaturas de pilotos de rally.
Nessa noite fizemos uma festa, com muita música ao vivo, tocada pelos marroquinos, e muito vodka, um bem valioso, e que por isso estava exposto ao lado das garrafas de água, nas barracas da última vila onde passámos antes de entrar no deserto.
Lembro-me de pararmos numa estação de combustível da BP, e enquanto os motoristas abasteciam os jipes pela última vez, atravessámos a estrada e percorremos a fila de barraquinhas para fazer as últimas compras.
A estação de serviço tinha um café. Entrei para tomar um chá e deparei-me com o que poderia ser um qualquer café central de uma aldeia portuguesa. Vários homens atentos à televisão, que ficaram mudos e olharam para nós curiosos.
Voltando à noite no auberge. A festa foi o máximo e aproveitámos para celebrar o aniversário do David, que passou a chamar-se King David, já não me lembro muito bem porquê. O problema foi voltar ao acampamento. Experimentem fazer trezentos metros numa completa escuridão, apenas com umas pequenas lanternas, e sem qualquer ponto de referência. A lua estava de folga!
Talvez no 5º ou 6º dia, atravessámos uma área de pequenas dunas, seguidas dum imenso palmal. Acampámos ao lado duma pequena aldeia que parecia, literalmente, feita de areia, quase passando despercebida na paisagem. Não visitámos a aldeia por sugestão do guia. Incomodar os habitantes daquele local longínquo, com o nosso ar de turistas curiosos, não fazia parte dos planos. Limitámos-nos a brincar com os miúdos que correram ao nosso encontro, eles sim, muito curiosos.
De costas para o acampamento vi o pôr do sol. A contra luz dos raios baixos desenhava os contornos do poço e da árvore ao seu lado. Uma árvore baixa, de troncos finos e uma ramagem superior achatada. Estou a olhar para uma das fotos que tirei nesse momento, e que tenho exposta na minha sala. Fantástico!
Há um enigma no deserto que ninguém conseguiu desvendar. No local mais amplo e solitário, a probabilidade de aparecerem, sem pré-aviso nem qualquer explicação, um ou muitos miúdos, a correrem, vindo de lado nenhum, para venderem camelos feitos de tecido com missangas ou fósseis do deserto, é enorme.
Afinal sempre tivemos shopping times!
Chegámos a um local perdido no tempo e no espaço. Uma espécie de ruínas, com restos do que pareciam antigas casas, e um poço escondido no meio das pedras.
Montámos as tendas dentro das paredes recortadas e na manhã seguinte eu e a Sónia descobrimos uma aranha gigantesca, quer dizer, grandinha para o que estamos habituadas a encontrar. Instintivamente começámos a gritar, mas não fizemos nada para sair da tenda, que tinha dois conjuntos de fechos para abrir. E do lado de fora o grupo ficou expectante, sem saber o que fazer. “a spider, a big spider”, e pronto começou a risota. Mas era de facto uma grande aranha.
Nesse dia choveu e levantou-se uma tempestade de areia fina, parecida com nuvens de pó, que se metia em todo o sítio. Só nessa altura dei valor aos turbantes na cabeça, que rapidamente se tornam verdadeiras mascaras contra a insistente areia.
A chuva foi ligeira, mas suficiente para tornar um curso de água seco, em lama, uma verdadeira armadilha para os camelos. Carregados, enterraram as suas longas pernas na lama, e não conseguiam sair sozinhos. Tivemos que descarregar os sete camelos, enterrados na lama até aos tornozelos, e com a areia fina a tentar fustigar qualquer pedacinho de pele à vista. Foram algumas horas de aflição, enquanto não vimos os camelos fora de perigo e sem nenhuma perna partida.
Nesse dia, chegámos a um vale espaçoso e plano, no meio de dunas enormes. Foi uma visão extraordinária, porque as dunas tinham aquela tonalidade do final da tarde, douradas, com sombras cobre em curvas com arestas alaranjadas e outras mais amarelas. Só que a tempestade de areia, que já nos acompanhava desde manhã, tornava a paisagem quase turva, como um quadro sépia. Acampámos nesse espaço plano, com um poço delimitado à superfície por uma pequeno muro de pedra, no meio de duas árvores, altas, esguias e com escassa folhagem. Para qualquer dos lados que olhássemos, o horizonte estava num plano acima das nossas cabeças, no cimo das dunas que nos rodeavam.
Foi nesse local que contornei uma duna enorme à procura de um local apropriado para fazer xi-xi, quando me deparei com uma imagem, no mínimo, insólita. 6 pessoas, 3 tendas, 10 camelos e um WC portátil!
Nessa noite fizemos uma fogueira e ficámos à volta dela, a dançar ao som da música árabe, tocada pelos rapazes dos camelos, os dois homens e o rapaz que tratavam dos dromedários. Carregavam os bichos, davam-lhes de comer, normalmente os restos dos nossos vegetais, base da nossa alimentação, dia sim, dia sim, até ao final da longa caminhada. O mais engraçado, é que dormiam com eles. Sim, dormiam sob as estrelas, apesar do frio e do cheiro dos animais. A verdade é que para abraçar o Fluffy, o meu camelo favorito, castanho claro e com patas felpudas, não me importei nada com o cheiro. Também, o que diria ele de mim, quatro dias sem duche, a toalhetes para bebé, e com areia em toda a parte do corpo.
Adiante. Nessa noite da música à volta da fogueira, os marroquinos organizaram um casamento típico, em que eu fui a escolhida para noiva do Hassan, o rapaz dos camelos. O Hassan, era o dono dos camelos, ou irmão do dono dos camelos, ou da família do dono dos camelos, whatever. 23 anos. Muito bonito. Uma espécie de versão moderna de Laurence da Arábia. E achou que estava apaixonado por mim. Como se pode ficar apaixonado por uma turista, no espaço de uma semana, a andar no deserto! Tentei explicar-lhe que eu nem sequer era loira, mas ele achou que eu era a rapariga ideal para oferecer camelos. Recusei as ofertas para conhecer os tais dos camelos, mas nessa altura já não estava tão certa disso, porque no último dia, quando chegámos ao final do tour em regime de acampamento com pensão completa, perto da vila onde ele e os camelos viviam, apareceu-nos todo lavadinho, bem cheiroso e com o seu turbante branco. Parecia uma miragem. Qualquer coisa nos parecia uma visão, depois de 10 dias sem ver qualquer outro ser humano lavado, incluindo nós. Quando digo nós, digo as 11 raparigas, estupefactas, a olhar para o Hassan. Ficavam a observá-lo à distância, com as objectivas das máquinas fotográficas focadas e a comentar “how gorgeos he is!”.
E nada disto o impediu de me ligar para Portugal, uns dias depois, a falar em árabe e francês, línguas que eu domino muito bem se for para dizer salamalecum ou au revoir. Foi um telefonema interessante, uma mistura de português, inglês, francês e árabe, sem tradução possível.
No último dia atravessámos as Dunas de Erg Chebi. Foi uma experiência extraordinária. Parecem apenas dunas de areia fofa, mas subir os 400m, nas arestas serpenteantes, com a areia a fustigar-nos as pernas como agulhas, é um pouco assustador.
Mais uma imagem inesquecível. O nascer do sol projecta diferentes intensidades de luz na areia, dando a ilusão de que as dunas se movem, com as suas sombras e curvas!
Nessa manhã deixámos Mezouga, sobre rodas, passámos em Erfoud e a promessa de um banho estava cada vez mais perto.
Depois de um duche de uma hora, na tentativa frustrada de retirar toda a areia do meu cabelo, percebi que esta tinha sido uma viagem fascinante a não repetir. Como fazer um salto de bungee jumpimg: foi o máximo, já percebi qual é a sensação, ainda bem que fiz, está feito, e não vou repetir!
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