Dezembro de 2001
Finalmente ia mudar de «casa». Finalmente a minha futura morada estava pronta, com um ano de atraso. Mesmo assim, aguardei até à véspera de natal para efectuar a minha mudança. Os últimos dias são os piores. Falta sempre alguma coisa e os atrasos de um dia, parecem piores de suportar que os atrasos de meses. Finalmente, lá saí, de malas e bagagens, do hotel que me acolheu durante tanto tempo.
A nova casa era um novíssimo apartamento, no 16º andar do mais recente edifício da cidade, colocado bem no seu centro, com um shopping centre na sua base. Não era o primeiro centro comercial da cidade, mas o mais moderno e o que estava aberto até mais tarde.
O meu T2 era muito confortável, com uma decoração moderna e acolhedora, que fazia as delícias dos meus amigos quando me visitavam pela primeira vez. Esta era uma atitude normal se considerarmos que o parque imobiliário moçambicano é velho e pouco reabilitado, e o mobiliário fora de moda.
Os meus amigos de Portugal estavam a chegar para passar umas férias, aproveitando o final do ano.
Dois dias depois da mudança, no dia 26 de Dezembro de 2001, estava eufórica, do lado de fora da porta de saída das chegadas dos voos internacionais. E lá apareceram, os meus branquinhos, vindos do frio do Inverno português.
A Sónia, o Paprika (Luís para os que não são amigos), a Paula e o Marquinho. Comigo, cinco, o número máximo para preenchermos a pick-up branca, four by four, alugada, que nos iria levar nas nossas duas semanas de férias de Verão africano. Foram das melhores férias que já gozei.
Primeira saída com destino ao Kruguer Park. Cansámo-nos das milhares de impalas, alimento mais abundante para os perigosos carnívoros, vislumbrámos as zebras, com as suas riscas bem definidas, semelhantes a uma identificação em código de barras, rimos com as diabruras dos macacos, acompanhámos os búfalos, assustámo-nos com os rinocerontes, enamorámo-nos pelos hipopótamos, procurámos os crocodilos, apreciámos as esbeltas girafas, delirámos com as gigantescas famílias de elefantes, ficámos atentos aos leões, observámos as horríveis hienas, comemos debaixo de dezenas de morcegos, ouvimos o cantar de diferentes pássaros, enquanto percorríamos a savana, felizes e emocionados. África! Wild África!
Finalmente ia mudar de «casa». Finalmente a minha futura morada estava pronta, com um ano de atraso. Mesmo assim, aguardei até à véspera de natal para efectuar a minha mudança. Os últimos dias são os piores. Falta sempre alguma coisa e os atrasos de um dia, parecem piores de suportar que os atrasos de meses. Finalmente, lá saí, de malas e bagagens, do hotel que me acolheu durante tanto tempo.
A nova casa era um novíssimo apartamento, no 16º andar do mais recente edifício da cidade, colocado bem no seu centro, com um shopping centre na sua base. Não era o primeiro centro comercial da cidade, mas o mais moderno e o que estava aberto até mais tarde.
O meu T2 era muito confortável, com uma decoração moderna e acolhedora, que fazia as delícias dos meus amigos quando me visitavam pela primeira vez. Esta era uma atitude normal se considerarmos que o parque imobiliário moçambicano é velho e pouco reabilitado, e o mobiliário fora de moda.
Os meus amigos de Portugal estavam a chegar para passar umas férias, aproveitando o final do ano.
Dois dias depois da mudança, no dia 26 de Dezembro de 2001, estava eufórica, do lado de fora da porta de saída das chegadas dos voos internacionais. E lá apareceram, os meus branquinhos, vindos do frio do Inverno português.
A Sónia, o Paprika (Luís para os que não são amigos), a Paula e o Marquinho. Comigo, cinco, o número máximo para preenchermos a pick-up branca, four by four, alugada, que nos iria levar nas nossas duas semanas de férias de Verão africano. Foram das melhores férias que já gozei.
Primeira saída com destino ao Kruguer Park. Cansámo-nos das milhares de impalas, alimento mais abundante para os perigosos carnívoros, vislumbrámos as zebras, com as suas riscas bem definidas, semelhantes a uma identificação em código de barras, rimos com as diabruras dos macacos, acompanhámos os búfalos, assustámo-nos com os rinocerontes, enamorámo-nos pelos hipopótamos, procurámos os crocodilos, apreciámos as esbeltas girafas, delirámos com as gigantescas famílias de elefantes, ficámos atentos aos leões, observámos as horríveis hienas, comemos debaixo de dezenas de morcegos, ouvimos o cantar de diferentes pássaros, enquanto percorríamos a savana, felizes e emocionados. África! Wild África!
Embora esta não seja uma viagem dentro de Moçambique, é uma viagem para quem vai a Moçambique. Isto porque, quem vai para Moçambique, aterra em Maputo, e Maputo fica a menos de 100 km do maior parque de animais selvagens existente no sudoeste do continente africano: o Kruguer National Park.
A dimensão é considerável e o formato é rectangular e acompanha a fronteira moçambicana para norte.
A primeira vez que visitei o Kruguer, encontrava-me na expectativa, não só pelos animais selvagens que iria encontrar pela primeira vez ao vivo, no seu ambiente natural, mas também porque era a minha primeira visita à República da África do Sul, o país mais desenvolvido de África.
Atravessar a fronteira de Ressano Garcia é desgastante, devido à forma arcaica de funcionamento dos serviços de migração e alfândegas, o que provocava filas intermináveis, desordenadas e desorganizadas de pessoas em trânsito entre países.
Depois da demora na fronteira, finalmente a África do Sul.
Atravessar a fronteira de Moçambique para a África do Sul, e vice-versa, é como sair e entrar em planetas diferentes!
Depois de sair de uma terra de mato a perder de vista, entro numa terra totalmente aproveitada com cultivos. Depois de quilómetros a observar apenas terra virgem, passo agora a ver zonas organizadas de comércio e habitação. Estava numa dimensão diferente!
Entrar no Kruguer National Park foi como entrar num programa da National Geographic ou da BBC Wild Life.
Voltámos a Maputo e iniciámos a nossa mais longa jornada.
Saímos de Maputo no dia 30 de Dezembro de 2002, rumo ao norte. O dia estava quente, no pino do Verão moçambicano. Vestíamos roupas leves com os fatos de banho por baixo, como sempre andaríamos durante os seguintes 10 dias.
À saída da capital o trânsito do costume. Muitos chapas, carrinhas de 10 lugares no máximo, que transportam 20 passageiros no mínimo. São os mais usados transportes utilizados em Moçambique, principalmente nas cidades, porque fora delas, os chapas são carrinhas de caixa aberta, apinhadas de gente, faça chuva ou faça sol. De preferência que faça sol, pois os moçambicanos não gostam de chuva, pelo menos é o que me apraz dizer pela forma como correm das gotas de água caídas do céu.
Vimos de tudo. Cabritos em cima de autocarros, autocarros tão carregados que pareciam tombar para um dos lados, galinhas dentro de autocarros e sempre muitos sorrisos que nos cumprimentavam à medida que os ultrapassávamos.
Deixámos para trás os bairros da periferia da cidade, uma mistura de velhas casas do tempo colonial, com barracas e armazéns de beira de estrada. As verdadeiras palhotas apareciam agora, em conjuntos cada vez maiores, até atingirem dimensões de pequenas aldeias. As únicas construções de alvenaria que se passavam a ver, eram as velhas cantinas, algumas reabilitadas outras deixadas ao abandono. O cheiro a poluição dos velhos motores dos carros era agora substituído pelo cheiro a terra, vegetação e fruta.
Uma das mais bonitas imagens que guardo de Moçambique é o conjunto de sentidos existente num mercado de beira de estrada. Manga, banana, ananás, coco, papaia, pêra-abacate, maçalas, cana-de-açúcar, batata africana, batata-doce, castanha de caju, amendoim, mulheres e crianças, tudo bem misturado, à sombra das árvores à beira da estrada.
Além das cores que dão vida ao quadro, é preciso ainda contemplar os cheiros, os sabores, os sons e sentir o toque. Pegar na fruta e descascá-la para a provar. Sentir as mãos dos meninos quando chamam a atenção, retribuir-lhes os grandes sorrisos brancos, sentir-lhes o cabelo que parece lã. Uma verdadeira obra-prima!
Chagámos ao nosso primeiro destino, onde iríamos passar a noite de fim do ano. O Bilene, ex S. Martinho do Bilene.
Ao descer para a praia, visualiza-se a lagoa, enorme, de forma alongada, paralela à costa, de tons azuis esverdeados intensos, areias brancas com casuarinas plantadas e água morna a roçar o quente. Na praia do Bilene é difícil refrescar do calor intenso, pois a água não é suficientemente fria. Não há ondas e é preciso percorrer dezenas de metros para que a água suba acima dos joelhos. Quanto a nadar sem pé, são centenas de metros até chegar à zona mais profunda.
Ficámos alojados numa casinha à beira da praia. Uma casinha com duas divisões onde dormimos, uma casa de banho e ventoinhas de tecto que nunca foram suficientes para afastar o calor. Tinha uma porta atrás, onde ficou estacionado o carro, e outra que dava para um pequeno varandim com uma mesa e cadeiras, onde nos sentávamos a comer, a conversar e a assistir à vida que passava na estrada em frente, entre a casa e a praia.
Durante dois dias explorámos em redor da lagoa, entre descobertas dos restos imortais dos Verões coloniais e banhos de água morna. Este foi o primeiro contacto dos meus amigos portugueses com as praias moçambicanas e todos estávamos a adorar.
Passámos a noite do dia 31 de Dezembro de 2001 na casa de praia do Tio Ibrahimo, família direita da minha família Silva. Uma casa fantástica, com uma piscina fantástica e uma vista ainda mais fantástica sobre a lagoa. O jantar foi óptimo, tal como o espectáculo do fogo de artifício ao toque das doze badaladas que mudam o ano, mas o melhor foram as primeiras horas do novo ano, sentados à porta da nossa casinha, a conversar e a admirar as estrelas.
Passámos o fim do ano no Bilene e depois rumámos a norte, parando nas diversas praias, novidade também para mim. Xizavane, Xai-Xai, Závora, Inhambane, Guijata Bay, Baía dos Cocos, Tofo, Barra, Morrungulo, Vilanculos, Magaruque e regresso a Maputo. No total, cerca de mil e quinhentos quilómetros, percorridos em dez dias, pelas belas praias moçambicanas. Umas bastante concorridas, como o Bilene e Inhambane, outras só para nós, como Xizavane, Morrungulo e Magaruque. Com panos de fundo de casuarinas, como o Bilene, de dunas, como Xizavane, de coqueiros, como Inhambane e Morrungulo e outras rodeadas de construções de veraneio do tempo colonial, como Vilanculos e o Tofo.
2 de Janeiro de 2002, aniversário do Marquinho. Acordámos muito cedo, às 5 horas da manhã, pois tínhamos cerca de 200 km para percorrer naquele dia, com várias paragens para visitas. Queríamos chegar a Inhambane ainda com luz do dia.
Àquela hora da manhã já o calor se fazia sentir. Acordámos o Marquinho ao som dos parabéns a você. Tínhamos uma surpresa para ele, um bolo de aniversário! Era o bolo-rei que a minha mãe me tinha enviado pelos meus amigos, e foi o nosso pequeno-almoço. E o presente, uns óculos para fazer snorkling, oferecidos pelo Paprika e a Paula. A Paula, como bióloga de investigação, fazia mergulho e não se esqueceu de que vinha visitar o oceano Índico, que na costa de Moçambique é considerado como um dos melhores locais de mergulho do mundo.
Sou muito esquecida em relação a datas de aniversário, mas nunca mais me esqueci da data de aniversário do Marquinho.
Arrumámos os sacos no carro e antes de partir ainda rematámos o mata-bicho com uns deliciosos ananases que duas mamanas vendiam do outro lado da rua. Por vezes comemos coisas simples, mas que por via das circunstâncias nos ficam na memória como do melhor que já provámos. Foi o que aconteceu com aquele ananás, o melhor que comi até hoje. Cada um custava cinco mil meticais, qualquer coisa como cinco escudos ou dois cêntimos de euro. A característica: eram-nos dados para a mão já descascados, à nossa frente, e era só comer como se come um gelado à dentada.
Lá saímos do Bilene, à procura de novas emoções. Fizemos uma breve paragem na praia do Xai-Xai, que não é das minhas favoritas, mas foi onde, um ano mais tarde, assisti ao eclipse total do sol. Foi espectacular. O dia ficou noite e o calor do sol deu lugar ao frio, enquanto centenas de pares de olhos protegidos observavam atentamente o fenómeno.
Um pouco mais à frente procurámos pela praia de Xizavane. Digo procurámos, porque não a conseguíamos encontrar. Na altura não havia qualquer indicação do local por onde devíamos sair da estrada nacional e por qual das picadas devíamos seguir até ao mar. Lá perguntámos e lá encontramos o pequeno caminho de terra que nos levou ao longo das margens de algumas lagoas até chegarmos à areia solta, que não foi fácil de atravessar. Escusado será dizer que tive de parar não sei quantas vezes e não sei por quanto tempo, para que a Paula pudesse investigar todo o tipo de vegetação e sei lá mais o quê que ela observava com tanto interesse.
Uma pequena baía, em terra, ladeada por gigantes dunas e no mar, por rochas que formavam uma espécie de grande piscina de água salgada. O Marquinho foi logo experimentar a sua prenda nova, acompanhado da Paula e do Paprika. Eu e a Sónia subimos um pouco as dunas, que no cimo tinham instaladas casas do tipo cabanas, que se podiam alugar. Era um lodge de sul-africanos, como a maior parte dos que existem ao longo da costa moçambicana, mas este ainda quase desconhecido, pois como já referi, nem placas indicativas existiam para lá chegar. De facto, em conversa com os donos, um casal já com alguma idade, percebemos que era recente. Pensando bem, não é necessário saber onde fica o lodge, pois os clientes são sul-africanos, com as férias compradas directamente na África do Sul, e normalmente acompanhados especificamente ao local.
Choveu, o céu ficou cinzento cor de chumbo, a areia amarela em vez de dourada e a água escura. Saímos de Xizavane rumo à província de Inhambane, ainda molhados dos banhos de mar e da chuva, mas de biquíni e fato de banho, porque o calor continuava o mesmo.
Já a tarde ia avançada quando passámos pela indicação de Závora. Parei o carro e ficámos na indecisão sobre se íamos ou não visitar a praia de Závora. Decidimos ir espreitar. Mas para espreitar o mar percorremos 25 km por uma estrada larga de terra vermelha e uma imensidão de coqueiros. Sim, estávamos na terra dos coqueiros, que fazem sombra às palhotas espalhados por todo o lado, de onde saia a população curiosa que nos acenava.
Acabámos por morrer de cede à beira da água. Acabámos por nos roer de curiosidade de ver a praia, a apenas uns escassos metros das dunas brancas e gigantes que nos separavam do mar. A estrada estava inundada pelas últimas chuvas e era impossível saber se conseguiríamos passar ou não. O sol já baixava no firmamento e decidimos voltar para trás e seguir viagem. O verde brilhante da vegetação tinha adquirido um tom diferente no percurso de volta à estrada nacional, até se transformar num verde-escuro, já sem sol.
O nosso objectivo era dormir em Guijata Bay, onde não tínhamos feito qualquer reserva. Como lá chegar era o problema, uma vez que não tínhamos ideia do caminho e a noite já tinha caído. Vimos uma placa em madeira, com letras laranja que direccionavam o nosso destino. Saímos da estrada asfaltada e seguimos por uma picada em bastante mau estado. Mais à frente e pela segunda vez naquele dia o mesmo cenário, a estrada inundada de água. Mas desta vez, a água parecia um buraco negro que não conseguíamos ver onde acabava. Ali ficámos parados a pensar qual o passo a seguir. Voltar para trás e ir procurar um sítio onde pernoitar na cidade de Inhambane parecia a opção mais acertada. Tínhamos já optado quando apareceram dois jipes sul-africanos. Também eles iam para o lado de Guijata Bay e sabiam um outro caminho. Mudámos de ideia e seguimos atrás deles.
Foi uma verdadeira aventura. Com a pouca experiência que ainda tinha na condução todo-o-terreno em areia solta, parecia-nos que participávamos numa prova de Formula1. Os sul-africanos avançavam a uma velocidade alucinante, considerando que era noite e parecia que percorriam uma estrada imaginária muito apertada e serpenteante entre os coqueiros, como se estes tivessem placas e reflectores que indicassem o caminho. Pois não tinham e parecia que se movimentavam e se colocavam constantemente à nossa frente. Foi uma sequência de gritos e aleluias, enquanto arrasava os coqueiros, sem saber muito bem como não lhes batíamos. A custo não perdi de vista as luzes traseiras do segundo jipe que nos guiava e foi um alívio quando passámos um grande arco de madeira e entrámos dentro do que parecia o parque de estacionamento do Guijata Bay. Como podíamos nós saber como era o parque de estacionamento do Guijata Bay, se nunca lá tínhamos ido. De facto tratava-se de um lodge em tudo semelhante ao Guijata Bay, mas era o Pandane. Desilusão!
Os sul-africanos racing lá nos explicaram que o Guijata Bay ficava a uns 5km dali e que era só seguir as placas estrategicamente colocadas nos troncos dos coqueiros. Não foi fácil, mas lá chegámos.
Nova desilusão! O Guijata Bay estava cheio, nem um quartinho. Foi aí que comecei a aprender que nunca se viaja em Moçambique no final do ano sem reservas feitas.
Indicaram-nos o Jangamo, que ficava mesmo ao lado. Já não tínhamos muitas forças. Eram quase 22 horas, estávamos cansados e famintos quando entrámos no bar do Jangamo, visto que a recepção já estava fechada. Deparámo-nos com um grupo de sul-africanos que bebiam junto ao bar, todo em madeira, alias, como era toda aquela construção. Uma grande sala com paredes de madeira e telhado de qualquer coisa parecida com colmo. Havia umas grandes janelas sem vidros, grandes rectângulos negros, pois não se conseguia perceber o que estava do lado de lá. Apenas se ouvia o barulho das ondas e sim, cheirava a mar.
Um dos donos do Jangamo, um senhor dos seus 60 anos ou mais, com uma cara vermelha e um sorriso simpático, informou-nos que também estavam cheios e por muito tempo ainda. Mas não precisámos de pedir mais nada, pois ele leu nas nossas caras o que precisávamos. Serviu-nos uns hambúrgueres com batatas fritas, umas coca-colas e levou-nos até uma espécie de cabana gigante, dívida no interior em vários compartimentos com pequenas camas e umas estantes feitas em palhinha. Eram os aposentos dos empregados e era tudo o que precisávamos naquela noite.
O acordar foi como entrar num sonho daqueles em que todos os sentidos entram. Pela janela, com estore de caniço, vi a luz do dia. O corpo doía-me enquanto me levantava da cama, quase rente ao chão. Abri a porta do quarto, onde dormi com a Sónia e saí para o corredor da grande cabana, que tinha seis quartos no total, três de cada lado do corredor, e onde em mais dois deles, dormiam o Paprika e a Paula e o Marquinho. Percorri o corredor no sentido da luz cada vez mais forte e saí para a rua, para uma passagem feita em troncos de árvore e coberta com ramos de coqueiro entrelaçados. Deviam ser quase oito da manhã e o sol já ia alto, brilhante no céu azul. Percorri o caminho que se inclinava sobre uma outra cabana, que concluí ser o bar onde tínhamos estado na noite anterior. Contornei o edifício, sempre no sentido descendente, até que me deparei com o mar, numa paisagem magnífica. Estava no cimo de uma colina e em baixo a praia dourada, cortada pela espuma branca das ondas, como um ligeiro risco ondulante que dividia a areia do mar imenso e azul, muito azul!
Num instante estávamos os quatro a olhar este cenário, de boca aberta. Quatro, porque a Paula tinha saído havia duas horas, para mergulhar com um grupo que tinha saído às sete da manhã. Voltou para nos dizer que ia mergulhar novamente. Estava encantada com o que viu debaixo de água.
Inhambane é, para mim, a cidade mais bonita de Moçambique. Situada na província dos coqueiros, rodeada de maravilhosas praias, destino preferido da maior parte dos veraneantes, envolvida pela Baía de Inhambane, sente-se como uma paragem no tempo. A ausência de edifícios altos faz com que o sol inunde permanentemente a cidade, calma e pacata, apenas perturbada pelos visitantes de passagem para as praias.
Foi na praia do Tofo, onde passámos uma das noites, que o meu pensamento ficou suspenso: como é fabuloso partilhar a felicidade e todas estas descobertas com os amigos.
Na manhã seguinte, fomos mata bichar à Praia da Barra, a não mais de vinte quilómetros do local onde dormimos. Mais uma praia fantástica povoada de coqueiros.
Dos momentos mais marcantes da nossa viagem, as noites passadas em Morrungulo foram os mais fantásticos. Uma praia imensa, de areias douradas, ladeada por ondas azuis de cristas brancas e coqueiros plantados na areia. A nossa casa, construída com materiais locais era composta de uma cozinha aberta para a sala, totalmente equipada, onde a única refeição preparada foi o abrir de um coco, dois quartos com janelas de esteiras e mosquiteiros a cobrirem as camas, o WC e a zona do duche, com brinde de um grande lagarto no tecto, que nos fazia companhia na hora do banho, uma sala de jantar, totalmente aberta dos lados, com uma pequena cancela que dava directamente para a praia. O jardim tinha ainda chapéus de colmo e uma mesa com bancos de madeira corridos. O complexo não tinha ainda restaurante, e dado que não nos apetrechámos de alimentos para cozinhar, procurámos um sítio para o repasto. Apenas trazíamos stock de água, bolachas, fruta que íamos comprando pelo caminho e combustível, para eventuais faltas de estações de combustível ou apenas falta de combustível em bombas de abastecimento já secas, situação muito comum nesta altura do ano. Encontrámos um boteco, debaixo de um cajueiro, no meio do mato, onde pedimos que nos confeccionassem o jantar. As refeições eram caseiras e tipicamente moçambicanas, servidas nos próprios tachos. A louça era antiga e pirosa, em cima de toalhas de mesa feitas de capulanas. Nem um restaurante de hotel de cinco estrelas nos poderia dar tamanho prazer.
Aqui, numa praia entre a Maxixe e Pomene, acordávamos com o barulho do mar e o sol a levantar no céu azul, fazíamos um passeio de quilómetros pela praia, dormíamos a sesta à sombra dos coqueiros, tomávamos banho de água salgada, saíamos para o mato para jantar, com banda sonora de passadas moçambicanas, regressávamos à nossa palhota e ficávamos a conversar pela noite dentro, à luz do luar, quando o gerador já se tinha deitado, embalados pelos sons do oceano Índico. Foram dias maravilhosos!
Queríamos ter ficado por aqui até ao regresso à capital, mas a curiosidade levou-nos mais longe. Seguimos ainda viagem até Vilanculos, onde ficámos instalados num lodge, de proprietários sul-africanos, o mais luxuoso onde pernoitámos durante aquela última semana. Ficámos também duas noites, e no regresso, o inesperado aconteceu.
Tínhamos percorrido apenas cerca de cinquenta quilómetros, dos setecentos que nos levariam a casa, quando o Marquinho se começou a sentir mal. Ficou branco, lábios secos e encrostados, antes de dizer «Pára o carro Rita, não estou bem». Nem tinha ainda tido tempo de travar e ele já tinha perdido os sentidos. Parei no meio da estrada nacional, debaixo de um sol escaldante, sem qualquer movimento por perto, sem rede no celular, sem cabines telefónicas ou pontos de SOS, ou a quem pedir ajuda. Não passava viva alma. Tirámos o Marquinho do carro, ele delirava. O Paprika foi buscar o chapéu-de-sol de praia para fazer sombra sobre o corpo prostrado no chão de asfalto aquecido. A Sónia abriu o estojo de primeiros socorros e escorriam-lhe lágrimas pelos olhos, enquanto tentava perceber como poderia ajudar. A Paula agarrou-o com força e eu deitava-lhe água para cima, na esperança de que viesse a si. Foram momentos de pânico até que ele acordasse e vomitasse o pequeno-almoço, ingerido há pouco mais de vinte minutos.
Foi a viagem mais tensa que já fiz. Colocámos o Marquinho no banco da frente, anteriormente ocupado pela Sónia, liguei o ar condicionado no máximo e carreguei no pedal do acelerador até aos cento e cinquenta quilómetros por hora, com uma mão sempre na buzina, para afugentar os habitantes locais que percorrem as bermas da estrada. Só desacelerava quando entrava em localidades, que por um infortúnio, nunca tinham qualquer cabine telefónica à vista. Quando encontrei uma, parei e corri a ligar para o meu médico. O seu telefone estava desligado. Consegui falar com a sua enfermeira, que me disse para ter calma e levar o doente para a clínica, que estariam à sua espera. Estava ainda a quatrocentos quilómetros de Maputo. Nunca parei de abanar o Marquinho com a minha mão esquerda, para que ele não dormisse. Foi angustiante chegar ao hospital.
Entrei pela clínica, por volta das cinco da tarde, levando o Marquinho em braços, ajudada pelo Paprika, enquanto as meninas ficavam a tomar conta do carro, mal estacionado. Não propriamente porque estava mal estacionado, mas porque tinha as nossas malas lá dentro, com grandes probabilidades de desaparecerem misteriosamente. Por vezes bastavam cinco minutos, e que existia de valor já era. Sabia-o bem, pois não teria sido a primeira nem a última vez que era vítima de assaltos deste género.
O médico já esperava por nós, mas pelo caminho o Marquinho voltou a desmaiar. Foi um alívio para mim, quando vi o meu amigo deitado numa cama com o médico ao lado.
Perguntou-nos o que tínhamos feito nos últimos dias, para tentar perceber qual o diagnóstico. Contei-lhe que fizemos um passeio por uma ilha no dia anterior, que estava muito calor, que comemos ostras à noite. Passado algum tempo, a notícia chegava.
- O vosso amigo está desidratado. Provavelmente insolação. Os meninos abusaram do sol! – disse com um ar reprovador - Já está medicado e terá que passar aqui a noite.
Foi nesse momento que o Paprika me surpreendeu. Começou, também ele a ficar branco, até cair no chão a perder os sentidos, mesmo à minha frente. Enquanto as enfermeiras o acudiam, corri como doida até ao carro, pois um pensamento macabro acabava de me assaltar, «E se elas também estão doentes? Será que já caíram?». Foi só um pensamento, pois elas aguardavam no mesmo sítio onde as deixei, com a expressão de quem quer novidades. Contei à Paula, namorada do Paprika, o que lhe tinha acontecido. Ela ficou na clínica, a fazer companhia aos rapazes, enquanto eu e a Sónia fomos a casa deixar as malas.
Nessa noite, também eu viria a cair, mas não com tanta gravidade. Tinha também apanhado demasiado sol e a tensão do dia e da condução, não ajudaram. Tinha queimaduras graves nas pernas, junto aos tornozelos. O médico disse-me que se achasse melhor, também eu poderia ficar na clínica essa noite. De facto, sabia que me tinha queimado em excesso, pois o movimento dos pés nos pedais de condução do carro provocara-me, durante toda a viagem, dores horríveis, que se foram intensificando.
Decidi ficar em casa com as meninas. O que aconteceria se também elas adoecessem?
As dores que sentia não vinham só das queimaduras, mas do cansaço do corpo em geral e principalmente dos rins. Quando finalmente me deitei, a cama parecia-me o melhor local do mundo, e as mãos da Sónia, que me punham pomada nas pernas doridas, a melhor cura possível.
No dia seguinte quase não me consegui levantar da cama, e os meninos regressaram a casa. O Marquinho já refeito do susto e o Paprika ainda um pouco descolorido devido à gastroenterite que tinha apanhado com toda aquela tensão.
Um final feliz, para uma viagem de sonho e um grande susto!
A dimensão é considerável e o formato é rectangular e acompanha a fronteira moçambicana para norte.
A primeira vez que visitei o Kruguer, encontrava-me na expectativa, não só pelos animais selvagens que iria encontrar pela primeira vez ao vivo, no seu ambiente natural, mas também porque era a minha primeira visita à República da África do Sul, o país mais desenvolvido de África.
Atravessar a fronteira de Ressano Garcia é desgastante, devido à forma arcaica de funcionamento dos serviços de migração e alfândegas, o que provocava filas intermináveis, desordenadas e desorganizadas de pessoas em trânsito entre países.
Depois da demora na fronteira, finalmente a África do Sul.
Atravessar a fronteira de Moçambique para a África do Sul, e vice-versa, é como sair e entrar em planetas diferentes!
Depois de sair de uma terra de mato a perder de vista, entro numa terra totalmente aproveitada com cultivos. Depois de quilómetros a observar apenas terra virgem, passo agora a ver zonas organizadas de comércio e habitação. Estava numa dimensão diferente!
Entrar no Kruguer National Park foi como entrar num programa da National Geographic ou da BBC Wild Life.
Voltámos a Maputo e iniciámos a nossa mais longa jornada.
Saímos de Maputo no dia 30 de Dezembro de 2002, rumo ao norte. O dia estava quente, no pino do Verão moçambicano. Vestíamos roupas leves com os fatos de banho por baixo, como sempre andaríamos durante os seguintes 10 dias.
À saída da capital o trânsito do costume. Muitos chapas, carrinhas de 10 lugares no máximo, que transportam 20 passageiros no mínimo. São os mais usados transportes utilizados em Moçambique, principalmente nas cidades, porque fora delas, os chapas são carrinhas de caixa aberta, apinhadas de gente, faça chuva ou faça sol. De preferência que faça sol, pois os moçambicanos não gostam de chuva, pelo menos é o que me apraz dizer pela forma como correm das gotas de água caídas do céu.
Vimos de tudo. Cabritos em cima de autocarros, autocarros tão carregados que pareciam tombar para um dos lados, galinhas dentro de autocarros e sempre muitos sorrisos que nos cumprimentavam à medida que os ultrapassávamos.
Deixámos para trás os bairros da periferia da cidade, uma mistura de velhas casas do tempo colonial, com barracas e armazéns de beira de estrada. As verdadeiras palhotas apareciam agora, em conjuntos cada vez maiores, até atingirem dimensões de pequenas aldeias. As únicas construções de alvenaria que se passavam a ver, eram as velhas cantinas, algumas reabilitadas outras deixadas ao abandono. O cheiro a poluição dos velhos motores dos carros era agora substituído pelo cheiro a terra, vegetação e fruta.
Uma das mais bonitas imagens que guardo de Moçambique é o conjunto de sentidos existente num mercado de beira de estrada. Manga, banana, ananás, coco, papaia, pêra-abacate, maçalas, cana-de-açúcar, batata africana, batata-doce, castanha de caju, amendoim, mulheres e crianças, tudo bem misturado, à sombra das árvores à beira da estrada.
Além das cores que dão vida ao quadro, é preciso ainda contemplar os cheiros, os sabores, os sons e sentir o toque. Pegar na fruta e descascá-la para a provar. Sentir as mãos dos meninos quando chamam a atenção, retribuir-lhes os grandes sorrisos brancos, sentir-lhes o cabelo que parece lã. Uma verdadeira obra-prima!
Chagámos ao nosso primeiro destino, onde iríamos passar a noite de fim do ano. O Bilene, ex S. Martinho do Bilene.
Ao descer para a praia, visualiza-se a lagoa, enorme, de forma alongada, paralela à costa, de tons azuis esverdeados intensos, areias brancas com casuarinas plantadas e água morna a roçar o quente. Na praia do Bilene é difícil refrescar do calor intenso, pois a água não é suficientemente fria. Não há ondas e é preciso percorrer dezenas de metros para que a água suba acima dos joelhos. Quanto a nadar sem pé, são centenas de metros até chegar à zona mais profunda.
Ficámos alojados numa casinha à beira da praia. Uma casinha com duas divisões onde dormimos, uma casa de banho e ventoinhas de tecto que nunca foram suficientes para afastar o calor. Tinha uma porta atrás, onde ficou estacionado o carro, e outra que dava para um pequeno varandim com uma mesa e cadeiras, onde nos sentávamos a comer, a conversar e a assistir à vida que passava na estrada em frente, entre a casa e a praia.
Durante dois dias explorámos em redor da lagoa, entre descobertas dos restos imortais dos Verões coloniais e banhos de água morna. Este foi o primeiro contacto dos meus amigos portugueses com as praias moçambicanas e todos estávamos a adorar.
Passámos a noite do dia 31 de Dezembro de 2001 na casa de praia do Tio Ibrahimo, família direita da minha família Silva. Uma casa fantástica, com uma piscina fantástica e uma vista ainda mais fantástica sobre a lagoa. O jantar foi óptimo, tal como o espectáculo do fogo de artifício ao toque das doze badaladas que mudam o ano, mas o melhor foram as primeiras horas do novo ano, sentados à porta da nossa casinha, a conversar e a admirar as estrelas.
Passámos o fim do ano no Bilene e depois rumámos a norte, parando nas diversas praias, novidade também para mim. Xizavane, Xai-Xai, Závora, Inhambane, Guijata Bay, Baía dos Cocos, Tofo, Barra, Morrungulo, Vilanculos, Magaruque e regresso a Maputo. No total, cerca de mil e quinhentos quilómetros, percorridos em dez dias, pelas belas praias moçambicanas. Umas bastante concorridas, como o Bilene e Inhambane, outras só para nós, como Xizavane, Morrungulo e Magaruque. Com panos de fundo de casuarinas, como o Bilene, de dunas, como Xizavane, de coqueiros, como Inhambane e Morrungulo e outras rodeadas de construções de veraneio do tempo colonial, como Vilanculos e o Tofo.
2 de Janeiro de 2002, aniversário do Marquinho. Acordámos muito cedo, às 5 horas da manhã, pois tínhamos cerca de 200 km para percorrer naquele dia, com várias paragens para visitas. Queríamos chegar a Inhambane ainda com luz do dia.
Àquela hora da manhã já o calor se fazia sentir. Acordámos o Marquinho ao som dos parabéns a você. Tínhamos uma surpresa para ele, um bolo de aniversário! Era o bolo-rei que a minha mãe me tinha enviado pelos meus amigos, e foi o nosso pequeno-almoço. E o presente, uns óculos para fazer snorkling, oferecidos pelo Paprika e a Paula. A Paula, como bióloga de investigação, fazia mergulho e não se esqueceu de que vinha visitar o oceano Índico, que na costa de Moçambique é considerado como um dos melhores locais de mergulho do mundo.
Sou muito esquecida em relação a datas de aniversário, mas nunca mais me esqueci da data de aniversário do Marquinho.
Arrumámos os sacos no carro e antes de partir ainda rematámos o mata-bicho com uns deliciosos ananases que duas mamanas vendiam do outro lado da rua. Por vezes comemos coisas simples, mas que por via das circunstâncias nos ficam na memória como do melhor que já provámos. Foi o que aconteceu com aquele ananás, o melhor que comi até hoje. Cada um custava cinco mil meticais, qualquer coisa como cinco escudos ou dois cêntimos de euro. A característica: eram-nos dados para a mão já descascados, à nossa frente, e era só comer como se come um gelado à dentada.
Lá saímos do Bilene, à procura de novas emoções. Fizemos uma breve paragem na praia do Xai-Xai, que não é das minhas favoritas, mas foi onde, um ano mais tarde, assisti ao eclipse total do sol. Foi espectacular. O dia ficou noite e o calor do sol deu lugar ao frio, enquanto centenas de pares de olhos protegidos observavam atentamente o fenómeno.
Um pouco mais à frente procurámos pela praia de Xizavane. Digo procurámos, porque não a conseguíamos encontrar. Na altura não havia qualquer indicação do local por onde devíamos sair da estrada nacional e por qual das picadas devíamos seguir até ao mar. Lá perguntámos e lá encontramos o pequeno caminho de terra que nos levou ao longo das margens de algumas lagoas até chegarmos à areia solta, que não foi fácil de atravessar. Escusado será dizer que tive de parar não sei quantas vezes e não sei por quanto tempo, para que a Paula pudesse investigar todo o tipo de vegetação e sei lá mais o quê que ela observava com tanto interesse.
Uma pequena baía, em terra, ladeada por gigantes dunas e no mar, por rochas que formavam uma espécie de grande piscina de água salgada. O Marquinho foi logo experimentar a sua prenda nova, acompanhado da Paula e do Paprika. Eu e a Sónia subimos um pouco as dunas, que no cimo tinham instaladas casas do tipo cabanas, que se podiam alugar. Era um lodge de sul-africanos, como a maior parte dos que existem ao longo da costa moçambicana, mas este ainda quase desconhecido, pois como já referi, nem placas indicativas existiam para lá chegar. De facto, em conversa com os donos, um casal já com alguma idade, percebemos que era recente. Pensando bem, não é necessário saber onde fica o lodge, pois os clientes são sul-africanos, com as férias compradas directamente na África do Sul, e normalmente acompanhados especificamente ao local.
Choveu, o céu ficou cinzento cor de chumbo, a areia amarela em vez de dourada e a água escura. Saímos de Xizavane rumo à província de Inhambane, ainda molhados dos banhos de mar e da chuva, mas de biquíni e fato de banho, porque o calor continuava o mesmo.
Já a tarde ia avançada quando passámos pela indicação de Závora. Parei o carro e ficámos na indecisão sobre se íamos ou não visitar a praia de Závora. Decidimos ir espreitar. Mas para espreitar o mar percorremos 25 km por uma estrada larga de terra vermelha e uma imensidão de coqueiros. Sim, estávamos na terra dos coqueiros, que fazem sombra às palhotas espalhados por todo o lado, de onde saia a população curiosa que nos acenava.
Acabámos por morrer de cede à beira da água. Acabámos por nos roer de curiosidade de ver a praia, a apenas uns escassos metros das dunas brancas e gigantes que nos separavam do mar. A estrada estava inundada pelas últimas chuvas e era impossível saber se conseguiríamos passar ou não. O sol já baixava no firmamento e decidimos voltar para trás e seguir viagem. O verde brilhante da vegetação tinha adquirido um tom diferente no percurso de volta à estrada nacional, até se transformar num verde-escuro, já sem sol.
O nosso objectivo era dormir em Guijata Bay, onde não tínhamos feito qualquer reserva. Como lá chegar era o problema, uma vez que não tínhamos ideia do caminho e a noite já tinha caído. Vimos uma placa em madeira, com letras laranja que direccionavam o nosso destino. Saímos da estrada asfaltada e seguimos por uma picada em bastante mau estado. Mais à frente e pela segunda vez naquele dia o mesmo cenário, a estrada inundada de água. Mas desta vez, a água parecia um buraco negro que não conseguíamos ver onde acabava. Ali ficámos parados a pensar qual o passo a seguir. Voltar para trás e ir procurar um sítio onde pernoitar na cidade de Inhambane parecia a opção mais acertada. Tínhamos já optado quando apareceram dois jipes sul-africanos. Também eles iam para o lado de Guijata Bay e sabiam um outro caminho. Mudámos de ideia e seguimos atrás deles.
Foi uma verdadeira aventura. Com a pouca experiência que ainda tinha na condução todo-o-terreno em areia solta, parecia-nos que participávamos numa prova de Formula1. Os sul-africanos avançavam a uma velocidade alucinante, considerando que era noite e parecia que percorriam uma estrada imaginária muito apertada e serpenteante entre os coqueiros, como se estes tivessem placas e reflectores que indicassem o caminho. Pois não tinham e parecia que se movimentavam e se colocavam constantemente à nossa frente. Foi uma sequência de gritos e aleluias, enquanto arrasava os coqueiros, sem saber muito bem como não lhes batíamos. A custo não perdi de vista as luzes traseiras do segundo jipe que nos guiava e foi um alívio quando passámos um grande arco de madeira e entrámos dentro do que parecia o parque de estacionamento do Guijata Bay. Como podíamos nós saber como era o parque de estacionamento do Guijata Bay, se nunca lá tínhamos ido. De facto tratava-se de um lodge em tudo semelhante ao Guijata Bay, mas era o Pandane. Desilusão!
Os sul-africanos racing lá nos explicaram que o Guijata Bay ficava a uns 5km dali e que era só seguir as placas estrategicamente colocadas nos troncos dos coqueiros. Não foi fácil, mas lá chegámos.
Nova desilusão! O Guijata Bay estava cheio, nem um quartinho. Foi aí que comecei a aprender que nunca se viaja em Moçambique no final do ano sem reservas feitas.
Indicaram-nos o Jangamo, que ficava mesmo ao lado. Já não tínhamos muitas forças. Eram quase 22 horas, estávamos cansados e famintos quando entrámos no bar do Jangamo, visto que a recepção já estava fechada. Deparámo-nos com um grupo de sul-africanos que bebiam junto ao bar, todo em madeira, alias, como era toda aquela construção. Uma grande sala com paredes de madeira e telhado de qualquer coisa parecida com colmo. Havia umas grandes janelas sem vidros, grandes rectângulos negros, pois não se conseguia perceber o que estava do lado de lá. Apenas se ouvia o barulho das ondas e sim, cheirava a mar.
Um dos donos do Jangamo, um senhor dos seus 60 anos ou mais, com uma cara vermelha e um sorriso simpático, informou-nos que também estavam cheios e por muito tempo ainda. Mas não precisámos de pedir mais nada, pois ele leu nas nossas caras o que precisávamos. Serviu-nos uns hambúrgueres com batatas fritas, umas coca-colas e levou-nos até uma espécie de cabana gigante, dívida no interior em vários compartimentos com pequenas camas e umas estantes feitas em palhinha. Eram os aposentos dos empregados e era tudo o que precisávamos naquela noite.
O acordar foi como entrar num sonho daqueles em que todos os sentidos entram. Pela janela, com estore de caniço, vi a luz do dia. O corpo doía-me enquanto me levantava da cama, quase rente ao chão. Abri a porta do quarto, onde dormi com a Sónia e saí para o corredor da grande cabana, que tinha seis quartos no total, três de cada lado do corredor, e onde em mais dois deles, dormiam o Paprika e a Paula e o Marquinho. Percorri o corredor no sentido da luz cada vez mais forte e saí para a rua, para uma passagem feita em troncos de árvore e coberta com ramos de coqueiro entrelaçados. Deviam ser quase oito da manhã e o sol já ia alto, brilhante no céu azul. Percorri o caminho que se inclinava sobre uma outra cabana, que concluí ser o bar onde tínhamos estado na noite anterior. Contornei o edifício, sempre no sentido descendente, até que me deparei com o mar, numa paisagem magnífica. Estava no cimo de uma colina e em baixo a praia dourada, cortada pela espuma branca das ondas, como um ligeiro risco ondulante que dividia a areia do mar imenso e azul, muito azul!
Num instante estávamos os quatro a olhar este cenário, de boca aberta. Quatro, porque a Paula tinha saído havia duas horas, para mergulhar com um grupo que tinha saído às sete da manhã. Voltou para nos dizer que ia mergulhar novamente. Estava encantada com o que viu debaixo de água.
Inhambane é, para mim, a cidade mais bonita de Moçambique. Situada na província dos coqueiros, rodeada de maravilhosas praias, destino preferido da maior parte dos veraneantes, envolvida pela Baía de Inhambane, sente-se como uma paragem no tempo. A ausência de edifícios altos faz com que o sol inunde permanentemente a cidade, calma e pacata, apenas perturbada pelos visitantes de passagem para as praias.
Foi na praia do Tofo, onde passámos uma das noites, que o meu pensamento ficou suspenso: como é fabuloso partilhar a felicidade e todas estas descobertas com os amigos.
Na manhã seguinte, fomos mata bichar à Praia da Barra, a não mais de vinte quilómetros do local onde dormimos. Mais uma praia fantástica povoada de coqueiros.
Dos momentos mais marcantes da nossa viagem, as noites passadas em Morrungulo foram os mais fantásticos. Uma praia imensa, de areias douradas, ladeada por ondas azuis de cristas brancas e coqueiros plantados na areia. A nossa casa, construída com materiais locais era composta de uma cozinha aberta para a sala, totalmente equipada, onde a única refeição preparada foi o abrir de um coco, dois quartos com janelas de esteiras e mosquiteiros a cobrirem as camas, o WC e a zona do duche, com brinde de um grande lagarto no tecto, que nos fazia companhia na hora do banho, uma sala de jantar, totalmente aberta dos lados, com uma pequena cancela que dava directamente para a praia. O jardim tinha ainda chapéus de colmo e uma mesa com bancos de madeira corridos. O complexo não tinha ainda restaurante, e dado que não nos apetrechámos de alimentos para cozinhar, procurámos um sítio para o repasto. Apenas trazíamos stock de água, bolachas, fruta que íamos comprando pelo caminho e combustível, para eventuais faltas de estações de combustível ou apenas falta de combustível em bombas de abastecimento já secas, situação muito comum nesta altura do ano. Encontrámos um boteco, debaixo de um cajueiro, no meio do mato, onde pedimos que nos confeccionassem o jantar. As refeições eram caseiras e tipicamente moçambicanas, servidas nos próprios tachos. A louça era antiga e pirosa, em cima de toalhas de mesa feitas de capulanas. Nem um restaurante de hotel de cinco estrelas nos poderia dar tamanho prazer.
Aqui, numa praia entre a Maxixe e Pomene, acordávamos com o barulho do mar e o sol a levantar no céu azul, fazíamos um passeio de quilómetros pela praia, dormíamos a sesta à sombra dos coqueiros, tomávamos banho de água salgada, saíamos para o mato para jantar, com banda sonora de passadas moçambicanas, regressávamos à nossa palhota e ficávamos a conversar pela noite dentro, à luz do luar, quando o gerador já se tinha deitado, embalados pelos sons do oceano Índico. Foram dias maravilhosos!
Queríamos ter ficado por aqui até ao regresso à capital, mas a curiosidade levou-nos mais longe. Seguimos ainda viagem até Vilanculos, onde ficámos instalados num lodge, de proprietários sul-africanos, o mais luxuoso onde pernoitámos durante aquela última semana. Ficámos também duas noites, e no regresso, o inesperado aconteceu.
Tínhamos percorrido apenas cerca de cinquenta quilómetros, dos setecentos que nos levariam a casa, quando o Marquinho se começou a sentir mal. Ficou branco, lábios secos e encrostados, antes de dizer «Pára o carro Rita, não estou bem». Nem tinha ainda tido tempo de travar e ele já tinha perdido os sentidos. Parei no meio da estrada nacional, debaixo de um sol escaldante, sem qualquer movimento por perto, sem rede no celular, sem cabines telefónicas ou pontos de SOS, ou a quem pedir ajuda. Não passava viva alma. Tirámos o Marquinho do carro, ele delirava. O Paprika foi buscar o chapéu-de-sol de praia para fazer sombra sobre o corpo prostrado no chão de asfalto aquecido. A Sónia abriu o estojo de primeiros socorros e escorriam-lhe lágrimas pelos olhos, enquanto tentava perceber como poderia ajudar. A Paula agarrou-o com força e eu deitava-lhe água para cima, na esperança de que viesse a si. Foram momentos de pânico até que ele acordasse e vomitasse o pequeno-almoço, ingerido há pouco mais de vinte minutos.
Foi a viagem mais tensa que já fiz. Colocámos o Marquinho no banco da frente, anteriormente ocupado pela Sónia, liguei o ar condicionado no máximo e carreguei no pedal do acelerador até aos cento e cinquenta quilómetros por hora, com uma mão sempre na buzina, para afugentar os habitantes locais que percorrem as bermas da estrada. Só desacelerava quando entrava em localidades, que por um infortúnio, nunca tinham qualquer cabine telefónica à vista. Quando encontrei uma, parei e corri a ligar para o meu médico. O seu telefone estava desligado. Consegui falar com a sua enfermeira, que me disse para ter calma e levar o doente para a clínica, que estariam à sua espera. Estava ainda a quatrocentos quilómetros de Maputo. Nunca parei de abanar o Marquinho com a minha mão esquerda, para que ele não dormisse. Foi angustiante chegar ao hospital.
Entrei pela clínica, por volta das cinco da tarde, levando o Marquinho em braços, ajudada pelo Paprika, enquanto as meninas ficavam a tomar conta do carro, mal estacionado. Não propriamente porque estava mal estacionado, mas porque tinha as nossas malas lá dentro, com grandes probabilidades de desaparecerem misteriosamente. Por vezes bastavam cinco minutos, e que existia de valor já era. Sabia-o bem, pois não teria sido a primeira nem a última vez que era vítima de assaltos deste género.
O médico já esperava por nós, mas pelo caminho o Marquinho voltou a desmaiar. Foi um alívio para mim, quando vi o meu amigo deitado numa cama com o médico ao lado.
Perguntou-nos o que tínhamos feito nos últimos dias, para tentar perceber qual o diagnóstico. Contei-lhe que fizemos um passeio por uma ilha no dia anterior, que estava muito calor, que comemos ostras à noite. Passado algum tempo, a notícia chegava.
- O vosso amigo está desidratado. Provavelmente insolação. Os meninos abusaram do sol! – disse com um ar reprovador - Já está medicado e terá que passar aqui a noite.
Foi nesse momento que o Paprika me surpreendeu. Começou, também ele a ficar branco, até cair no chão a perder os sentidos, mesmo à minha frente. Enquanto as enfermeiras o acudiam, corri como doida até ao carro, pois um pensamento macabro acabava de me assaltar, «E se elas também estão doentes? Será que já caíram?». Foi só um pensamento, pois elas aguardavam no mesmo sítio onde as deixei, com a expressão de quem quer novidades. Contei à Paula, namorada do Paprika, o que lhe tinha acontecido. Ela ficou na clínica, a fazer companhia aos rapazes, enquanto eu e a Sónia fomos a casa deixar as malas.
Nessa noite, também eu viria a cair, mas não com tanta gravidade. Tinha também apanhado demasiado sol e a tensão do dia e da condução, não ajudaram. Tinha queimaduras graves nas pernas, junto aos tornozelos. O médico disse-me que se achasse melhor, também eu poderia ficar na clínica essa noite. De facto, sabia que me tinha queimado em excesso, pois o movimento dos pés nos pedais de condução do carro provocara-me, durante toda a viagem, dores horríveis, que se foram intensificando.
Decidi ficar em casa com as meninas. O que aconteceria se também elas adoecessem?
As dores que sentia não vinham só das queimaduras, mas do cansaço do corpo em geral e principalmente dos rins. Quando finalmente me deitei, a cama parecia-me o melhor local do mundo, e as mãos da Sónia, que me punham pomada nas pernas doridas, a melhor cura possível.
No dia seguinte quase não me consegui levantar da cama, e os meninos regressaram a casa. O Marquinho já refeito do susto e o Paprika ainda um pouco descolorido devido à gastroenterite que tinha apanhado com toda aquela tensão.
Um final feliz, para uma viagem de sonho e um grande susto!
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