sábado, 8 de março de 2008

Mar02 Skydiving


Março de 2002

Vestir o fato, preto e vermelho, com as «pegas» amarelas (para que os queda-livristas se possam agarrar no ar, enquanto caem a uma velocidade média de duzentos quilómetros por hora), colocar o pára-quedas às costas, o altímetro no pulso, os óculos e o capacete na cabeça e seguir para a inspecção, antes de entrar no avião.
A descolagem é, em Moçambique, acompanhada de gritos e assobios de todos os pára-quedistas, assim que as rodas deixam o solo. É por isso que gosto tanto de saltar em Moçambique, há um convívio muito especial entre os meus brothers skydivers, embora o espírito da queda-livre seja fantástico em qualquer parte do mundo, ou pelo menos nas dropzones onde já saltei.

A subida, mais ou menos rápida, dependente da capacidade da aeronave e da quantidade de pára-quedistas que vão lá dentro, vai permitindo fazer o reconhecimento da zona. Chegados aos dez mil pés de altitude, quase quatro mil metros acima do chão, vem a parte que mais gosto, não fosse o frio que invade o espaço interior do avião quando a porta se abre. São menos dois graus centígrados por cada mil pés de altitude, o que no Inverno pode ser bastante desagradável. Um a um, os pára-quedistas queda-livristas, vão saindo às ordens do jump-master, incumbido de fazer o spot e coordenar o salto. Sempre fiquei para o fim na saída do avião, principalmente, devido ao meu peso, quase no limite do mínimo exigido. São cinquenta quilos, mais os dez do pára-quedas, e quando estava a aprender, levava ainda vestido um colete de chumbo para chegar ao peso do meu instrutor. Ver sair os restantes companheiros do load é divertido, cada um tem um tique que o identifica. Eu gosto de tomar balanço para me atirar para o ar, fazer resistência ao vento e sentir a liberdade de voar.
Dependendo da altitude do salto, poderá haver mais ou menos segundos de queda-livre. Dos dez mil pés, são cerca de 50 segundos até à altitude de segurança para a abertura do pára-quedas. Em menos de um minuto é possível gastar energias comparáveis a um dia inteiro de ginásio.
Sempre me diverti muito nos meus saltos. O meu logbook apresenta muitas descrições de saltos «just for fun». 360, loops, tracks, tudo é possível. Nunca cheguei ao free-style profissional, mas era uma amadora de manobras estranhas que faziam as gargalhadas dos meus amigos.
Depois de abrir o pára-quedas e de sentir que estou viva, sem ter a necessidade de recorrer a nenhum procedimento de emergência, é só usufruir da paisagem e voar até aterrar, sem nenhum incidente, de preferência.
Eu já tive alguns episódios engraçados. Já aterrei fora da zona prevista por três vezes. Uma devido a uma saída tardia, quando já me encontrava só no avião, outra devido a um problema na abertura do meu pára-quedas e uma terceira por puro erro de cálculo face à intensidade do vento. Já saltei para a praia, ao pôr-do-sol, aterrando por um triz na areia branca, evitando a água salgada e os coqueiros. Já aterrei entre árvores, tendo que rezar para não ficar pendurada numa delas. Na África do Sul, na Suazilândia, em Portugal e em Moçambique.

Aeroporto de Tete, 40 graus à sombra e 35 graus à noite, provavelmente! Saímos do B737 no final da tarde. Eu e o mister Ângelo, o meu instrutor de pára-quedismo em Moçambique. Tínhamos uma comitiva à nossa espera, ou à minha espera mais objectivamente. Acho que ficaram desiludidos quando me viram, acho que esperavam uma mulher grande a transpirar força e coragem. Deparam-se com uma miúda de um metro e sessenta, cinquenta quilos e um ar gracioso, como se o meu objectivo fosse um espectáculo de ballet. Chagávamos para nos juntarmos ao resto do grupo de pára-quedistas para um show-jump que ia ocorrer no dia seguinte, Sábado, por ocasião das festas da cidade. Eu fui convidada obrigatória por ser o único elemento do sexo feminino. Numa situação normal, o número máximo de pára-quedistas que podiam encher o Cherokee do comandante Barroso, não permitiria que eu fosse abrangida, pois a ordem seria descendente por experiência e eu era uma das pára-quedistas mais recentes no grupo. Tinha apenas 25 saltos, o que em qualquer parte do mundo era insuficiente para participar num show-jump, mas em Moçambique o cumprimento das regras nunca foi exemplo e as leis da física nem sempre funcionam em África!

Chegou o grande momento dos dois saltos para um campo de futebol que não ficava muito longe do aeroporto, de onde descolávamos. Dos quarenta saltos que tenho registados no meu logbook, os dois saltos em Tete foram os únicos em que não tive frio, pelo contrário, enquanto o avião subia, lentamente, não via a hora de sair e apanhar o vento relativo a oito mil pés. Foi fantástico, como quando se acaba de correr cinco quilómetros debaixo de sol e se mergulha em água fresca. Demorei alguns segundos para localizar a drop-zone. Era o primeiro salto e acima dos quatro mil pés de altitude, tudo cá em baixo me parece igual, principalmente numa zona desconhecida. Acabou por não ser difícil, pois era só seguir as dezenas ou centenas de pessoas que corriam, como formigas, vindas de várias direcções, para se juntarem num ponto escuro, era o campo de futebol. A zona de aterragem era um pequeno círculo feito por pessoas que inundaram o campo e nem as balizas se viam. Com pouca experiência em aterragens precisas, fiz um esforço enorme e lá consegui acertar bem no meio da circunferência, mas a aterragem foi tão dura que bati no chão e rasguei o meu fato no joelho direito, zona que até tem um reforço protector. O Ângelo, com centenas de saltos e experiência em aterragens de precisão, acabou por apanhar uma senhora na aterragem, que seguiu para o hospital, mas apenas com ferimentos ligeiros. Apesar de um pára-quedas ser bastante manobrável, nem sempre se consegue conduzi-lo exactamente para onde se quer. Basta um erro de cálculo entre manobras, altitude e posição face ao vento, e lá se vai para ao capim.
A multidão estava eufórica. A maior parte daquelas pessoas nunca tinha visto um pára-quedista, quanto mais um grupo de seis que saltava só para eles.
Corremos para a carrinha que nos levou ao aeroporto, pois ainda tínhamos o segundo salto. Eu estava agora mais confiante. O meu receio de não conseguir aterrar no local certo, ou me estampar contra um dos muitos obstáculos que circundavam o campo de futebol, desaparecera. O campo de futebol era de terra batida, com duas balizas em ferro e sem qualquer linha de campo visível. Um dos topos tinha duas torres de luz e um grosso fio eléctrico que as unia, enquanto que o outro apenas tinha uma árvore no meio de um descampado, esse seria o lado ideal de entrada, não fosse o vento que não o permitia usar. Uma das laterais do campo tinha casas térreas e a outra, uma bancada em cimento que terminava do lado de fora, num alto muro.
Dobrávamos os pára-quedas na sala vip do aeroporto, uma pequena sala, com alguns sofás velhos, um pequeno mini-bar e sem ar condicionado. A ordem do comandante foi dada, “Temos que ir agora, ou já não nos autorizam a descolagem”. O sol estava quase a pôr-se e sem luz não se fazem voos visuais. O meu pára-quedas não estava fechado. Fechar o saco que envolve a calote, é a parte mais difícil, principalmente para mim, que ainda usava uma 200, muito tecido para meter dentro de um pequeno saco! A alternativa, levar o pára-quedas que tínhamos trazido de reserva, muito velho, com calote principal de 190 pés e com um slider que não lhe pertencia, era maior do que devia. Todos sabíamos isso e todos olharam para mim quando me viram pôr o pára-quedas às costas e entrar no avião. Ninguém disse nada. Confesso que não foi uma viagem agradável, com a dúvida sobre a funcionalidade do equipamento que me iria proteger a vida. Nunca se deve saltar sem um sentimento 100% seguro de que o equipamento está operacional e nas melhores condições. Parece básico, mas a maior parte dos acidentes ocorrem precisamente por negligência do pára-quedista, é o que chamamos de excesso de confiança, que, como em tudo, pode ser mortal.
Quando saí do avião, já não havia raios de sol e tudo me parecia um bocado escuro lá em baixo. Saímos a seis mil pés, por isso a angustia de ver o pára-quedas a abrir demorou muito pouco. Larguei o piloto e olhei para cima expectante. A calote abriu, mas tal como eu esperava, não totalmente, pois o slider não conseguiu descer até ao fim. Mas no problem, encontrava-me a voar em perfeição e com óptima manobralidade. Quando me concentrei para entrar no circuito de aterragem, já estava muito perto e decidi seguir o Ângelo. Entrei atrás dele pela parte lateral do campo que tinha as bancadas de cimento. Tinha descido demasiado e tive que levantar os pés para não bater no topo do muro. Apesar desta razia, aterrei que nem uma pena, como diziam os meus companheiros de desporto.
Tirei o capacete e ficou à vista o meu cabelo curto, com reflexos avermelhados. Ainda nem tinha apanhado a calote do chão, quando um homem baixo me levantou o braço pegando-me no pulso e me levou a percorrer o campo junto à população, falando alto e com tom de discurso. Sem eu perceber muito bem o que se estava a passar, uma mulher chegou perto de mim, observou-me com curiosidade e sem pedir licença, apalpou-me o peito, que não era assim tão visível dentro do fato de pára-quedismo. Gritou que eu era “minina”, fez-se silêncio e depois ouvi o meu nome, em uníssono e com a mesma cadência. Até autógrafos me pediram!
E agora vinha a festa. Depois do banho tomado e de um jantar com ementa igual para todos, um peixe típico do rio Zambeze do qual já não me lembro o nome, apenas me ficou na memória quão feio era, lá seguimos, em grupo para a night de Tete. Como já sabia, os pára-quedistas são uma curiosidade em terras do interior e logo surgia um grande club de fans feminino, que nos perseguia por toda a parte.

Algumas meninas com curiosidade de saber como se fazia pára-quedismo ou só pela desculpa de se aproximarem dos meus colegas, ou alguns rapazes mais atrevidos (naquela noite de Tete, saiu-me na rifa o vocalista de uma banda rock moçambicana que se deslocaram também de Maputo, convidada para actuar nas festas da cidade).
Foi nesta altura que conheci o Markus, que viria a ser meu amigo e companheiro de muitos passeios e aventuras.
O Markus é uma pessoa fantástica. Simpático, prestável, amoroso e amigo, e também um homem bonito, com traços que fazem lembrar os gregos, o que poderá ser imaginação minha, devido à sugestão de um pai grego, o que também não seria suficiente, dado que a mãe é brasileira. Como se não bastassem os genes multiculturais, o Markus nasceu no Líbano, de onde rumou para África, passando primeiro por Angola, antes de ir parar a Moçambique, como um expatriado, como eu. É um homem interessado e sempre ávido de aprender. Fala e escreve árabe, francês, inglês e português, embora este último com um sotaque brasileiro e africano em simultâneo.
É o amigo mais gentlemen que tenho ou que alguma vez tive e, acima de tudo, um verdadeiro amigo.
Fizemos viagens para conhecer novos locais e quebrar a rotina da vida em Maputo. Saltámos juntos, visitámos Johanesbourg down-town, onde nunca ninguém me tinha acompanhado antes e muitas mais coisas. Eu podia estar triste ou contente, mas o seu espírito alegre fazia-me sentir sempre bem. Agora que a distância nos separa, é com carinho que o guardo como amigo para sempre.

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