sábado, 8 de março de 2008

Jan02 Quissanga


Janeiro de 2002

Estava um calor indescritível, quando eu e o Fernando saímos do Boing737 no aeroporto da Beira. Para a nossa primeira viagem de negócios tínhamos bilhetes em classe executiva Maputo-Beira, Beira-Nampula, Nampula-Pemba e Pemba-Maputo, percurso a executar numa semana. O objectivo era fazer um trabalho de auscultação do mercado e perceber para onde iríamos expandir primeiro a empresa, quais os primeiros pontos de distribuição a implantar.
A falta de reabilitação do parque imobiliário moçambicano é mais visível, na segunda maior cidade moçambicana, a Beira, capital da província de Sofala. Ao contrário da ex Lourenço Marques, esta cidade do centro de Moçambique, também ela à beira-mar plantada, foi erguida à volta de rotundas, dando-lhe um aspecto circular. Na minha opinião, como mera observadora e sem qualquer formação em arquitectura, é o mais rico vestígio de imponentes e diferentes edifícios do tempo colonial, agora fustigados pelo tempo, pela guerra, pela pobreza e pela simplicidade de quem não entende a necessidade ou a forma de utilização de semelhantes “casas”.
Foi esta a impressão que me ficou das várias vezes que acabei por visitar a Beira, um enorme conjunto de círculos raiados por ruas ladeadas de árvores que as tornavam ligeiramente mais frescas.
A Beira tinha finalmente um Hotel reabilitado, o Tivoli, onde pernoitamos. Os restantes hotéis são ainda memórias do tempo colonial, onde até os lençóis parecem ter cinquenta anos. Tal como o restaurante que nos aconselharam, não muito longe do Hotel. Fomos a pé e foi um alívio entrar pela porta preta espelhada que dava acesso ao restaurante com ar condicionado. Recuei no tempo! Parecia que estava dentro de uma discoteca dos anos oitenta. Alcatifa vermelha, espelhos em demasia, mobília preta e empregados a mais para o espaço disponível, vestidos com calças pretas, camisas brancas e laço preto ao pescoço. Comemos peixe grelhado com legumes cozidos, o que normalmente o Fernando comia, em nome da sua saudável alimentação. Depressa percebi que não gostava do peixe em Moçambique. Peixe de águas quentes, muito seco para o meu gosto.

Nampula, considerada a terceira mais importante cidade moçambicana, no Norte do país, passara a assumir o segundo posto, com destaque para o seu desenvolvimento económico. Uma cidade “limpa”, como se tivesse sido lavada e se preparasse para o futuro.
A influência muçulmana era mais evidente no norte do país, onde a raça indiana detém o poder económico. A província de Nampula é um exemplo indiscutível deste fenómeno, que beneficia do corredor de comércio com origem no porto de Nacala.
Ficámos alojados no Hotel Tropical, um edifício antigo, quadrado e sem varandas, com uma pequena esplanada numa plataforma de cimento, junto à entrada. Os quartos eram pequenos e abafados, com mobílias antigas e muito feias, mas o pior eram as cores. As paredes eram verdes, um verde forte, também a cor dos cortinados. Era horrível e só me lembro da cara que fizemos quando entrámos cada um no seu quarto e voltámos imediatamente para trás, na esperança de que o quarto do outro fosse um pesadelo menor. Mas não, os quartos eram terrivelmente idênticos.

Em vez de utilizarmos a nossa passagem aérea Nampula-Pemba, decidimos alugar uma viatura e percorrer de carro os cerca de setecentos quilómetros que separam as cidades, entre a província de Nampula e Cabo Delgado.
Há viagens que só conseguimos classificar de maravilhosas, depois de as fazermos e passado algum tempo, quando conseguimos digerir todas as novidades. Quando as coisas que vemos podem não ser directamente belas, mas que pelo contexto, a surpresa, a diferença, o facto de serem únicas e de nos abrirem os horizontes, alterando a nossa perspectiva até então, nos trazem sentimentos confusos e surpreendentes. Foi o que aconteceu nesta viagem. Por ser a primeira pelo Moçambique profundo. Por ter sido esta viagem que me mostrou a realidade moçambicana e das suas gentes.

Pemba, capital da província de Cabo Delgado, ex Porto Amélia, já foi um dos pontos mais importantes de passagem de mercadorias. O seu cartão de visita é a Praia do Wimbi, com as suas areias claras, águas quentes e límpidas e sombras dos coqueiros. É um dos pontos turísticos mais importantes de Moçambique. Uma das cidades que melhor combina as construções do tempo colonial com as palhotas do “tempo local”. As casas e os embondeiros. Para mim, foi fascinante observar esta união, que já tinha visto em Nacala, onde parámos para almoçar durante a nossa viagem.

Fizemos um percurso até cerca de cem quilómetros para Norte de Pemba, até Quissanga. Percorremos uma estrada de terra batida, que se notava ter sido reparada recentemente, entre vegetação e pequenas aldeias muito bem organizadas e limpas. Demos boleia a dezenas de pessoas, que se encavalitavam na caixa aberta da carrinha 4x4 que alugámos em Nampula e que iríamos deixar no aeroporto de Pemba.
Parámos no fim da estrada, junto ao mar. Deixamos o carro do lado de fora do que parecia ser uma muralha feita de caniço, que rodeava um pequeno conjunto de casas de pescadores. Atravessámos a pequena aldeia, se assim lhe podia chamar, até nos encontrarmos na praia. Uma baía que protegia as pequenas e rudimentares embarcações dos pescadores de marisco. A pequena baía era formada por grandes mangais que entravam pelo mar de ambos os lados da praia de areia branca. Logo se juntaram alguns homens que se aproximaram de nós. O Fernando, que fala perfeitamente o landim do sul, o changane, tentava comunicar com os curiosos, enquanto eu me comecei a envolver com as quatro crianças que me rodearam. Não falavam português, não iam à escola e provavelmente nunca iriam ver um computador nas suas vidas. Sorriam e não precisámos de palavras para nos entendermos. O Fernando tirou-nos uma fotografia. Eu, com um top vermelho escuro, uma capulana de tons rubros enrolada à cintura e um chapéu vermelho vivo. Os meninos com o que sobrava das suas roupas, desbotadas e muito sujas. Deliravam a pousar para a câmara e todos sorrimos. É uma das mais belas fotos que tenho de Moçambique.
Apesar de meigos e afáveis, é preciso compreender a sua realidade e saber que nos tirarão a roupa do corpo se tiverem oportunidade. Foi o que aconteceu em plena praia do Wimbi, onde ficámos alojados. Saí de chinelos, capulana enrolada ao corpo, que serviria também de toalha e um livro na mão. Sentei-me à sombra de um coqueiro, muito próximo da água e não resisti a um mergulho. Ainda não tinha molhado os pés, olhei para trás e os meus chinelos já iam longe, na mão de um garoto que corria pela praia. Não deixa de ser um quadro tropical de sonho.

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