sábado, 8 de março de 2008

Nov03 CahoraBassa

Novembro de 2003

Há já algum tempo que queria visitar a barragem de Cahora Bassa, mas ninguém me queria acompanhar nesse passeio.
- Ver a barragem Rita, lá no fim do mundo, com aquele clima tão quente que nem se consegue respirar? És doida! – Dizia o Miguel convicto.
- Mas como é que sabes que não consegues respirar? Já lá foste por acaso?
- Não fui ao Songo, mas fui a Tete, que é ao lado. E tu também já foste e sabes muito bem o que te espera.
- Fui e respirei muito bem, como todas as pessoas que lá vivem. Ok, não queres ir mas eu vou – disse decidida – só tenho que encontrar uma companhia, ir sozinha não tem piada – com quem é que se partilha as coisas bonitas que se vê? Não tem de facto piada.
- Duvido que vás encontrar alguém que te acompanhe – disse o Miguel em tom de gozo.
Ele sabia que me fascinava conhecer a África profunda, neste caso, o Moçambique profundo. E acabava por ouvir, também ele fascinado, as histórias das minhas viagens, quando voltava das minhas aventuras, mas sempre sem ele, que arranjava uma qualquer desculpa para ficar perto da sua casa de banho. O moçambicano é muito estranho, eu pensava, com um país lindo para descobrir, vão passar férias à África do Sul, ao Brasil, às Maurícias ou a Portugal. Os que têm dinheiro claro, o resto da população já vive no mato mesmo.
Procurei durante algum tempo e lá encontrei a minha companhia para visitar o Songo. O Hugo, o meu amigo violinista. O Hugo tinha vindo para Maputo há cerca de seis meses, dar aulas de música e, mais concretamente, de violino, na Escola Portuguesa. Estava maravilhado com o país, não fosse ele um artista!
Para chegar ao Songo, sem ser de carro, o que demoraria uma eternidade, fomos no Beachcraft de uma companhia aérea doméstica moçambicana, cujo dono tinha sido meu instrutor de pilotagem e era, como eu, membro do Aeroclube de Moçambique. Uma personagem muito engraçada, sempre muito aéreo, como é típico dos pilotos por amor à aviação.
O voo fez escala no Chimoio, província de Sofala, e em Tete. Novamente o aproximar da pista, enquanto os embondeiros se iam tornando maiores e maiores, até parecerem gigantescos.
A pequena aeronave levantou voo em direcção ao Songo e repentinamente saímos de uma planície de tons castanhos secos para entrar no meio de montanhas verdejantes, tipo Jurassik Park. E lá estava a barragem, encravada no meio de uma profunda garganta de rocha maciça. Fabuloso!
A entrada na pista do pequeno aeroporto faz-se por um vale a considerável altitude, passando de quase mil pés de altitude, para cerca de trezentos pés, com a pista logo ali. É uma manobra arriscada e não é qualquer piloto que a faz com confiança.
No aeroporto do Songo não aterram aviões de maiores dimensões, aliás, mesmo os que lá aterram, aproveitam parte da pista em terra batida, já que o asfalto não é suficiente, principalmente para a descolagem, que em dias quentes, pode levar mais tempo. Com o calor o ar é menos denso e é necessária mais velocidade para tirar a aeronave do chão. Tantas explicações, deve ser defeito de aprendiz de piloto!
A dificuldade em arranjar companhia para fazer esta viagem, só mostra que ninguém sabe do que se está a falar. A vila do Songo é um verdadeiro oásis em Moçambique. É o único local com água potável à torneira, piscinas públicas em bom estado de conservação, casas térreas com magníficos jardins, ruas sem lixo, pequenos recipientes para o lixo espalhados pela vila e não se vêm barracas, nem pessoas pobres a viverem na rua. Tem uma delegação da Escola Portuguesa, um Centro Social, com quartos com casas de banho privativas, restaurante, esplanada e uma bela piscina, para acolher os visitantes. É claro que tudo isto é suportado pela barragem, que criou todas estas infra-estruturas durante a época colonial, mas que surpreendentemente, as mantém. A barragem é a sexta maior do mundo em capacidade e uma das mais avançadas em tecnologia. A HCB – Hidroeléctrica de Cahora Bassa é a maior empresa da economia moçambicana, todavia, é também o seu maior prejuízo. A ideia foi fabulosa, e um autentico feito na história da construção, dado que foi construída na década de setenta, numa zona tão remota. Contudo, a energia produzida por Cahora Bassa, vai além fronteiras, para a África do Sul e Zimbabué, não havendo ainda infra-estruturas que a leve através do seu próprio país.
À chegada e logo à porta do avião, recebeu-nos o Sr. Abel, relações públicas da HCB. Um senhor muito simpático, já com alguns cabelos brancos, que trabalhava na empresa há várias décadas e que ali via o seu futuro. Contou-nos, que há uns anos atrás tinha voltado a Portugal, mas que não conseguiu lá sobreviver muito tempo, e regressou à HCB e ao Songo.
O Sr. Abel levou-nos a visitar as instalações da empresa nesse mesmo dia, e foi aí que aprendemos a história da barragem e pudemos observar a sala de comandos e a tal tecnologia de ponta a funcionar. Só iríamos visitar a barragem na manhã seguinte, em conjunto com um grupo de pessoas que viria de Tete.

Acordámos cedo e estávamos de pequeno-almoço tomado quando o Sr. Abel apareceu com a sua carrinha Ford já um bocado ferrugenta. Estava frio. O Songo, ao contrário do que se pensa, não é assim tão quente, pelo contrário, tem um microclima muito característico, com neblinas matinais e uma aragem fresca.
Iniciámos a descida para a barragem, numa estrada que serpenteava a colina até ao rio. Quando apareceu no nosso raio de visão fiquei estupefacta, um verdadeiro colosso. 172 metros de altura de um lado. 140 metros de profundidade da água do outro, que delimita o grande lago de Cahora Bassa, com 240 quilómetros de comprimento, até à fronteira com o Malawi. De onde me encontrava, olhava para o cimo das paredes escarpadas unidas pela barragem, apenas até meio da sua altura. Deviam ter cerca de 350 metros de altura!
O grupo juntou-se. Uma família de cinco pessoas, incluindo três crianças, um casal jovem e nós. Entrámos nas várias viaturas que ali se encontravam estacionadas. Descemos por um túnel enorme, onde cabiam dois camiões lado a lado, e que serpenteou sempre a descer, até sair da rocha. Estávamos no ponto mais baixo da barragem e daqui podíamos ver de baixo para cima, a imensidão da parede da barragem. Daqui podíamos ouvir com grande intensidade o barulho da água que saía à pressão da única comporta aberta e caía cá em baixo com grande estrondo. Não nos conseguíamos ouvir uns aos outros.
Entrámos novamente dentro da rocha e continuámos a descer, até que a carrinha parou e saímos para nos juntarmos ao grupo e entrar.
- Entrar onde? – Perguntava ao Sr. Abel enquanto o Hugo olhava para cima, para o tecto do gigante túnel, completamente espantado.
- Vamos fazer a visita às salas onde se encontram as turbinas – O Sr. Abel ria do nosso espanto.
Estávamos completamente dentro da rocha e eu tentava imaginar como teriam conseguido escavar aqueles túneis há trinta anos atrás. Ouvia-se uma espécie de som aquático, como se estivéssemos rodeados de água, que não víamos. O cheiro não consigo descrever, mas acho que cheirava a gruta!
Colocámos uns capacetes amarelos e abriram a pesada e grossa porta que dava acesso à tal “sala” que íamos visitar. Parecia uma daquelas portas dos laboratórios onde se estudam vírus perigosos, que selam completamente quando fechadas. Entrei e demorei algum tempo a processar o que via. A “sala” era um grande rectângulo escavado na rocha, com a área de um campo de futebol de onze jogadores, e a altura equivalente a um prédio de quatro andares, que era o número de pisos que se encontravam ao fundo, junto a uma das paredes de rocha, com paredes de vidro e onde diversas pessoas se movimentavam de um lado para o outro. O Sr. Abel chamou um senhor alto, vestido com um fato de macaco azul, igual ao de todos os outros trabalhadores. Seria a pessoa que nos iria explicar o que ali se passava.
Mais ao menos a meio havia um grande buraco redondo, onde se encontrava uma das turbinas da barragem. Encontrava-se para baixo, ao longo de uma altura equivalente a mais quatro salas como aquela. Para nos dar a ideia da dimensão da turbina, estava uma das suas peças, em manutenção, que pesava apenas 900 kg. Ainda hoje me sinto muito pequenina quando imagino a Barragem de Cahora Bassa.
Naquele dia conhecemos o tal casal jovem que fazia parte do grupo. O Max e a Isabel. Ele italiano, ela espanhola. Ele enfermeiro e ela médica. Trabalhavam para a AMI, em Tete e eram namorados. Nunca tinha contactado com ninguém tão de perto que fizesse trabalho voluntariado em países subdesenvolvidos, que tanto precisam de ajuda humanitária, principalmente de cuidados básicos de saúde.
O único trabalho humanitário que eu fazia, era ajudar, com um grupo de mais quatro amigas, um orfanato em Maputo, com muitas crianças órfãs de pais vítimas de HIV/Sida. Muitas dessas crianças eram também seropositivas, outras deficientes profundas. Todas elas abandonadas e sem mais ninguém no mundo. Comprávamos roupas e outro material necessário para o orfanato. Era muito doloroso. Os bebes, mesmo os mais pequenos, agarravam-se às nossas pernas e sorriam olhando para cima. Apenas queriam mimos e atenção. Ao pegar numa criança ao colo, já sabia o quanto iria doer deixá-la. Elas sorriam, completamente alheadas do seu futuro.
Com o Max e a Isabel, eu e o Hugo, fomos fazer um passeio de barco pelo lago de Cahora Bassa. O tempo estava fresco e a neblina tapava o cume das montanhas que rodeavam o lago. Cheirava a terra molhada, um dos meus cheiros favoritos em África. Em vários locais encontrámos pequenas canoas, feitas de troncos de árvores, com homens escuros, com apenas um pedaço de tecido sujo a cobrir-lhes o sexo. Eram habitantes de pequenos conjuntos de palhotas, situadas nas margens do lago, que lhes dava o seu meio de subsistência, a pesca. Eles remavam, levando atrás pequenas redes de pesca, e sem receio das dezenas de hipopótamos que se banhavam junto às margens. Neste contexto, o homem e os hipopótamos são inimigos, dado que os animais destroem muitas vezes as culturas dos habitantes junto às margens do lago.
Fascinava-me aquele contraste. Ali mesmo ao lado de uma das maiores barragens do mundo, construída pelo homem e apetrechada com a mais alta tecnologia, viviam uns senhores de tanga, que pescavam em canoas rudimentares e se passeavam no meio dos hipopótamos. África!

Depois deste fim-de-semana, tão rico de informação, regressamos a Maputo, pela mesma via, pelo mesmo meio. O Hugo vinha um bocadinho abatido. Ele é franzino e até tem um aspecto frágil. Agora estava também branco e tremia de frio. Acho que não aguentou o clima do Songo! Mas passados uns dias, já recomposto e com as nossas fotografias já reveladas, contávamos as nossas aventuras aos nossos amigos.

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